Reúnem-se mais
uma vez os artistas de Aveiro/Arte para expor os seus trabalhos. É
uma espécie de ritual a que a cidade já se habituou. Ritual de
profundo simbolismo, pois que, sendo diversificado e numeroso o
agrupamento que constitui a associação, ele procura manter-se unido,
mantendo o princípio sagrado da liberdade de cada elemento, quer no
estilo e na concepção, quer na projecção do mundo que de cada um
deles traz em si. Ora, numa sociedade cada vez mais dividida por
competições nem sempre legítimas, por rivalidades movidas mais pelo
egoísmo do que pela conquista esforçada e digna do lugar cimeiro do
pódio, mais pela vã cobiça do prémio transitório do que pelo direito
aos louros amplamente merecidos, existir nesta pluralidade harmónica
é, por assim dizer, um milagre. O que é que tem acontecido para que
este milagre se realize perante os nossos olhos espantados? Em
primeiro lugar, o amor que ligou, desde a primeira hora, os
fundadores do grupo à arte. Nomes como o de Zé Penicheiro, Vasco
Branco, Jeremias Bandarra, Artur Fino, Gaspar Albino, têm hoje os
seus firmados na história das artes plásticas da nossa região e do
país, porque neles a paixão criadora foi capaz de subsistir e
sobrepor-se a todos os demais apelos da vida. Conseguiram juntar-se
e combinar esforços para trabalhar e expor colectivamente, num tempo
em que qualquer pequeno agrupamento era considerado subversão, muito
mais se esse ajuntamento apresentava como traço de união a
actividade intelectual livre e criativa. Mais fácil lhes foi
manterem-se fiéis a essa opção vital pelos anos fora, depois que a
liberdade foi reconhecida com o 25 de Abril, como direito
inquestionável de todos os Portugueses. Daí o fogo que foram capazes
de transmitir a outros artistas mais novos e a facilidade com que a
associação cresceu pela adesão constante de novos membros. Em
segundo lugar o reconhecimento que o município, através dos seus
mais altos dirigentes, tem dedicado a Aveiro/Arte. Disponibilizando
espaços para os seus elementos se reunirem e tornarem visíveis as
suas obras, os poderes públicos aveirenses têm sabido criar as
condições necessárias para que Aveiro se mexa no sentido de
constituir uma “polis”. Para que serve a arte se ela não se comunica
ao povo? Como é que uma comunidade se afirma se, a par do
desenvolvimento económico e social, não desenvolve a necessidade de
beleza, sobretudo a necessidade daquela beleza profunda que envolve,
como defendia a filosofia antiga, a justiça, o amor, a virtude? Será
o ter o que mais importa no mundo? Não será o ser em toda a sua
busca de equilíbrio, de harmonia, de dignidade conscientemente
procurada o que mais importa à sociedade humana? Estas interrogações
só vincam a força das respostas que todos sabemos quais são.
Louvores pois aos artistas que prosseguem no seu afã de dar a Aveiro
a dimensão cultural de que ela precisa. Louvores ao município que os
protege. Louvores ao público que acorre às exposições para tomar
conhecimento da beleza que os artistas aveirenses criam, dispondo-se
a acompanhá-los nas descobertas que eles nos propõem, dos caminhos
possíveis para chegar até ela.
Joaquim Correia |
“Penso que nosso
sentido de realismo até certo ponto mudou depois do Surrealismo –
bom, na verdade depois de Freud -, porque nos tornou mais
conscientes da maneira como o realismo se serve do inconsciente. E
um bom exemplo disso, são alguns trabalhos que Picasso fez por volta
de 1930, umas pequenas telas que executou em Dinard de figuras na
praia – se não me engano em 1928. Como acho que Picasso absorveu
tudo, ele não podia deixar de absorver também o Surrealismo, e essas
imagens, apesar de profundamente não-ilustrativas, são profundamente
reais no que toca às figuras. Por exemplo, aquela interessante
imagem, de forma curva, que destranca a porta de uma cabine de praia
é muitíssimo mais real do que se ela fosse simplesmente a ilustração
de alguém que destranca a porta de uma cabine de praia”.
David Sylvester,
Entrevistas com Francis Bacon. |