PRIMEIRA REVOLUÇÃO ANTITOTALITÁRIA
Hungria 1956: a vitória de uma derrota
(1)
Há 50 anos, estudantes, intelectuais e operários
derrubaram em Budapeste a estátua de Estaline e apresentaram um programa
de democratização e independência. Em 24 horas, a insurreição alastra a
todo o país. O comunista reformador Imre Nagy forma um governo
multipartidário, liquidando o regime de partido único. A seguir, dá o
passo fatal: declara a Hungria neutral e denuncia o Pacto de Varsóvia.
Na madrugada de 4 de Novembro, os tanques russos iniciam o esmagamento
da revolução. O Ocidente não se mexeu. Foi a "primeira revolução
antitotalitária", percursora da Primavera de Praga, do Solidariedade
polaco e do desmoronamento do bloco soviético em 1989.
No dia 23 de Outubro de 1956, 50 mil estudantes
concentram-se em Budapeste, junto da estátua do poeta nacional, Sandor
Petöfi, para aprovar um caderno de 15 reivindicações, entre elas o
regresso ao poder do comunista reformador Imre Nagy.
Na véspera, uma assembleia de 4000 estudantes elaborara o
texto e convocara uma "manifestação silenciosa para exprimir a profunda
solidariedade com os acontecimentos da Polónia", em que um movimento
popular forçara a substituição da velha guarda estalinista pelo
comunista reformador Wladyslaw Gomulka.
Proibida e depois autorizada, a concentração depressa
reúne 50 mil pessoas. Juntam-se-lhe operários e soldados: no fim são 200
mil. Os estudantes arvoram bandeiras nacionais com um rasgão no meio, de
onde foi arrancado o símbolo do partido comunista e a estrela vermelha.
Um actor declama um poema de Petöfi, herói da revolução nacional de
1848: "Perante Deus, juramos que nunca mais seremos escravos." Trazido
de casa, Nagy tenta moderar os manifestantes. Em vão.
Derrubam a estátua de Estaline. Dirigem-se à rádio para
ler o seu documento. Os agentes da AVH (polícia secreta) recebem-nos a
tiro. Parte dos soldados chamados em reforço passam-se para o lado dos
manifestantes. Durante a noite, operários ocupam fábricas, apoderam-se
das armas da milícia, assaltam depósitos de armamento. Começa a caça aos
AVH e os primeiros ataques a soldados russos.
Tomado de pânico, o líder comunista, Erno Gerö, pede a
intervenção das tropas soviéticas e, ao mesmo tempo, nomeia Nagy
primeiro-ministro. No dia seguinte, Janos Kadar, outro recém-reabilitado
– foi preso e torturado por "titismo" – assume a direcção do partido,
com a bênção de dois altos dirigentes soviéticos, Suslov e Mikoian,
enviados à pressa de Moscovo. Tudo em vão.
A 24, já todo país está levantado. A greve geral
generaliza-se e formam-se conselhos revolucionários por todo o lado, que
rapidamente se armam e tomam o poder. Há um clima de guerra civil, com
uma feroz perseguição aos AVH, que são massacrados, depois de, a 25,
terem voltado a disparar sobre a multidão, matando uma centena de
pessoas. A maioria do exército e grande parte dos comunistas aderem à
insurreição. A revolta torna-se revolução. O seu programa é claro:
eliminação dos estalinistas, dissolução da polícia secreta, aumento de
salários e, sobretudo, a independência nacional - denúncia do Pacto de
Varsóvia, proclamação da neutralidade, recurso às Nações Unidas.
As raízes
"A insurreição não foi premeditada e, de facto,
surpreendeu os próprios participantes", dirá um ano depois o relatório
do inquérito da ONU.
Mas tem antecedentes. Estaline morre em 1953, abrindo na
Hungria uma fase de intensa luta entre o estalinista Matyas Rakozi,
chefe do partido, e o primeiro-ministro, Imre Nagy, que defende um
socialismo nacional e acaba a ser expulso do partido em 1955.
Em Fevereiro de 1956, Khrustchov inicia no XX Congresso
do Partido Comunista da URSS um processo de desestalinização que cria
grandes expectativas. No fim de Junho de 1956, a revolta operária de
Poznan, na Polónia, gera um movimento nacional que leva ao poder Gomulka,
forçando a mão a Moscovo. Na Hungria, acumulavam-se os sinais. Em Março
fora reabilitado o antigo dirigente comunista Lazlo Rajk, vítima de um
dos últimos grandes processos estalinistas e enforcado em 1949. Cresce a
exigência de democratização. Até ao princípio de 1953, tinham sido
executadas duas mil pessoas e internadas 200 mil. As reivindicações de
23 de Outubro há muito vinham sendo formuladas por um influente grupo de
intelectuais, o Círculo Petöfi: fim do estalinismo e da tutela
soviética.
A tragédia
Imre Nagy era um comunista reformador que pretendia, como
Gomulka, estabelecer uma via nacional para o socialismo e manter boas
relações com Moscovo. Mas a situação é incontrolável e ele assume as
exigências do movimento.
A 27 constitui um governo pluripartidário, pondo termo ao
regime de partido único. A 28, anuncia um acordo com Moscovo e dá ordem
de cessar-fogo. Rejeita a qualificação da insurreição como
"contra-revolucionária" e atribui-lhe o objectivo de garantir a
independência e "fazer progredir a democratização da nossa vida
nacional". "São os graves crimes da época precedente que desencadearam
este grande movimento."
A 30, as tropas soviéticas começam a retirar-se. A
euforia instala-se. A revolução parecia ter alcançado os seus
objectivos. A 1 de Novembro, depois dos russos terem recomeçado a enviar
tropas, Nagy passa o Rubicão e anuncia a neutralidade da Hungria,
denunciando o Pacto de Varsóvia. Apela ao secretário-geral da ONU.
A direcção soviética esteve aparentemente dividida. A
criação de "uma nova Finlândia" terá sido encarada. Há uma primeira
declaração do Kremlin que ambiguamente o admite. Mas o que estava em
jogo não era apenas a Hungria, mas o risco de contágio de toda a Europa
de Leste e a desagregação do Pacto de Varsóvia. A partir de 30 de
Outubro, a decisão de Moscovo está tomada.
Dois factores jogam a seu favor. Primeiro, os Estados
Unidos permanecem fiéis ao mapa de Ialta. O Presidente Eisenhower disse
ter "o coração com o povo húngaro". A Rádio Europa Livre (americana) não
cessou de apelar à radicalização, criando a ilusão de que uma
intervenção ocidental seria possível. Ainda a 31 de Outubro denuncia a
tibieza do Governo Nagy e pede aos húngaros que não deponham as armas e
ataquem os russos. Entretanto, o embaixador americano em Moscovo
tranquilizava o Kremlin, dizendo que os EUA não consideravam a Hungria
um "aliado".
O segundo factor é a crise do Suez. A última aventura
imperial da França e da Grã-Bretanha no Médio Oriente passa a concentrar
as atenções internacionais, deixando as mãos livres a Moscovo na
Hungria. Divididos, os aliados ocidentais também não têm qualquer
possibilidade de impor uma negociação à Rússia sobre uma "neutralização"
da Europa Central, com concessões equilibradas dos dois campos, anotou
André Fontaine.
Na madrugada de 4 de Novembro, os tanques russos reentram
em Budapeste. O secretário-geral do partido, Janos Kadar, desaparecido a
1, reaparece com os soviéticos. O último apelo da União dos Escritores –
"Salvem a Hungria! Socorro!" – nunca teve resposta. A repressão é
brutal: 20 mil húngaros mortos, contra 720 soldados soviéticos.
Exilaram-se mais de 200 mil pessoas. A 12, reina na Hungria a paz dos
cemitérios. Para o jornalista e historiador François Fejtö - húngaro
naturalizado francês e durante décadas responsável na AFP pela cobertura
do mundo comunista – a insurreição de Budapeste foi "a primeira
revolução antitotalitária".
Os húngaros esperavam vencer: "É o lado sobrenatural da
revolução". Contavam com outra reacção dos ocidentais. Mas triunfaram
numa perspectiva histórica. "A revolução de 1956 pode ser considerada
como a antecipação de uma situação que acabou por ser a de toda a Europa
Central. Anunciou o desabamento do comunismo nestes países, e mesmo na
URSS", conclui.
O mesmo pensa o historiador húngaro Miklós Mólnar,
testemunha dos acontecimentos, para quem 1956 marca uma viragem
irreversível. "Vitória de uma derrota: Budapeste 1956" é o título do seu
livro sobre a revolução húngara.
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–
Jorge Almeida Fernandes, in “Público” de 2006
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