POR JOÃO CORRÊA DE SÁ

 ARA apresentar um apontamento histórico – embora resumido e despretensioso, dada a escassez do tempo concedido nada mais permitir – sobre a venerável relíquia que é o castelo da Feira, é preciso mergulhar, pelo menos, nos remotos tempos da dominação romana.

Tudo nos leva a crer que no local, onde hoje vemos a velha fortaleza, deveria ter existido uma construção romana, fosse ela acastelada para defesa das populações, ou simples templo para cw1ta de quaisquer deuses. Na verdade, para além de alguns pormenores de construção da torre de menagem, por certo a parte mais antiga, onde alguns arqueólogos vêem restos dessa Origem, existe como prova evidente disso, a presença de pelo menos duas «aras» romanas, casualmente encontradas entre os escombros de reconstituições feitas, não se Podendo adivinhar quantas pedras mais por lá se encontrarão escondidas, e talvez capazes de nos esclarecer muitas das incógnitas com que hoje nos debatemos.

Entre essas conta-se a da própria denominação do primitivo povoado. Durante alguns anos deu-se como assente ter sido a actual Vila da Feira chamada Lancobriga na época pré-romana, baseando-se tal convicção nas distâncias inscritas no célebre itinerário de António Pio. Modernamente, porém, não se faz essa afirmação, em virtude de estudos mais recentes terem levantado algumas objecções dignas de ponderação. Mas parece-me que, se não se pode afirmar, talvez também não se possa negar, seria interessante reunir as várias hipóteses para ver até que ponto se tem progredido neste pormenor, o que, pela sua extensão, pode ser feito aqui.

Aparece-nos, posteriormente, a denominação Civitas Sanctae Mariae, herdada da organização visigótica, com que, digamos, entrou no período histórico. Como em tudo que está envolvido pelo nevoeiro dos séculos, também a seu respeito houve quem duvidasse se teria ou não pertencido à actual Vila da Feira esse nome ou, por outras palavras, se lhe caberia o cabeçaiato da circunscrição administrativa correspondente, o mesmo acontecendo quanto à designação subsequente de Terra de Santa Maria que é simples adaptação da anterior. Mas creio que se deixou de discutir isso depois que o Dr. Aguiar Cardoso publicou a obra Terra de Santa Maria – (Civitas Santae Mariae) onde, com documentos, amarra aquelas denominações à actual Vila da Feira.

No século XII aparece o nome de «Feira» ligado ao anterior, naturalmente pela importância que deve ter tido um mercado aqui instituído em tempos imemoriais, e por certo dos mais antigos do país, de que possivelmente conserva ainda o dia – 20 de cada mês – mas não o primitivo local que, com probabilidade, se situava nos terrenos adjacentes ao castelo, talvez do lado poente, em redor de uma pequena capela desaparecida quando ficou pronta a actual hexagonal, existente junto à barbacã do castelo, mandada construir pela condessa D. Joana em 1656. Dessa velha feira deve ser reminiscência a que chegou até nós como «Feira da Linhaça», que naquele lugar se realizava, a mostrar-nos quanto antigamente nesta região se cuidava do linho, cultura que morreu depois de generalizados os tecidos de algodão fabricados industrialmente. Tal mercado manteve-se lá junto ao castelo por mais algum tempo como feira anual, enquanto que, por necessidade de mais espaço ou qualquer outra razão, desceu nos outras meses para local mais favorável. Segundo afirma o pároco da Vila, em 1758, o actual local chamava-se / 45 / nessa altura «feira nova», por ter vindo tempos antes do lugar de Santo André para ali. Se assim foi parece que o Rossio será pelo menos o terceiro largo da feira, o que não admira dados os seus muitos séculos de existência. O título de Vila é também velho, devendo ter sido mesmo uma das primeiras terras a recebê-lo como designativo honroso da sua importância de aglomerado urbano e sede concelhia, pois já assim vem identificada nas Inquisições de D. Afonso III.

 

TÃO VELHO COMO A PRÓPRIA NACIONALIDADE

UM MERCADO IMPORTANTE EM TEMPOS IMEMORIAIS

A «FEIRA DA LINHAÇA» E A «FEIRA NOVA»

ERMÍGIO MONIZ E A FUNDAÇÃO DA NACIONALIDADE

DE BALUARTE MILITAR A PAÇO REAL

«AQUI NASCEU PORTUGAL»!

 

É à ilharga e sobranceiro à Vila que se encontra o castelo – um dos mais belos de Portugal – como guarda sempre pronto a agasalhar dentro das suas muralhas as populações que amanhavam os terrenos em redor, com denominação paralela àquela, com a qual se confundia. Antes da fundação da nacionalidade deve ter vivido aqui, como senhor ou conde da Civitas Sanctae Mariae, Munio Viegas, que se viu forçado a retirar para o norte ante o irresistível avanço das tropas árabes comandadas pelo terrível Almansor, para mais tarde voltar a reconquistá-las, facto esse que se encontra consignado em velhos papéis, e interpretado com muitas confusões. Pelo que ao castelo se refere, se não sabemos ao certo o ano desse acontecimento, conhecemos ao menos que a Câmara Municipal mantinha, até meados do século passado, o costume de comemorar a data da sua reconquista no dia 24 de Junho.

Mais tarde Ermígio Moniz, possível descendente daquele Munio Viegas, tenens da Terra de Santa Maria, surge em lugar de relevo na formação da nacionalidade, conforme se pode deduzir do que rezam antigas crónicas. De companhia com outros ricos-homens, num rasgo de ousadia e interpretando o sentir latente da população, explora em profundidade a circunstância de D. Teresa se mostrar excessivamente ligada ou mesmo comprometida com elementos galegos, e atraindo o jovem Infante D. Afonso Henriques para o seu sonho, oferece-lhe o trono da independência a conquistar. Por razão dessa atitude e suspeitada primazia na chefia desse movimento, foi o Castelo da Feira um dos primeiros – se não o primeiro – a levantar voz pelo Infante, que é como quem diz pela independência de Portugal.

Dada a localização geográfica deste castelo, consolidada a independência e escorraçados os árabes sempre mais para Sul, deixou ele de, como tal, ter serviço activo. De baluarte militar foi, digamos, jubilado em palácio real, embora mesmo nessa qualidade de fraca relevância, visto que os Reis acabaram por escolher Lisboa como assento normal das suas cortes. Por isso, apesar de, com frequência, deambularem pelo reino a tomar conhecimento directo das necessidades locais e prestar justiça, só transitoriamente os albergaria dentro das suas muralhas. No entanto, no final do reinado de D. Sancho I, era reconhecido pelo próprio Rei como possível residência digna da Rainha sua mulher e das Infantas suas filhas, conforme o declarou e aconselhou em testamento. Como, porém, parece não o terem utilizado, pelo menos de modo a deixar memória, deve ter ele começado lenta caminhada para a ruína, sem lhe valer a presença do alcaide, pois não era convenientemente reparado, cuidado esse guardado, como é natural, para os castelos fronteiriços.   / 46 /

Continuou, no entanto, a ser pertença do Rei, mesmo quando as terras em redor foram concedidas a outrem em senhorio. Assim aconteceu quando D. Fernando deu a Terra de Santa Maria a seu cunhado D. João Afonso Telo, e passado pouco, do mesmo modo, D. João I, no dia seguinte ao da sua aclamação como Rei, desprezando a anterior doação em virtude do seu beneficiário estar por Castela, por sua vez a doou a Álvaro Pereira, seu marechal. Só no reinado de D. Afonso V, em 1448, é que o terceiro senhor da Terra de Santa Maria recebeu também o castelo com a obrigação de o correger e armar. Datará, portanto, dessa época o aspecto até nós chegado. Como não se conhece o anterior, é de presumir que tais obras visassem principalmente consolidar o então existente, com melhoria num ou noutro ponto e acréscimos num ou noutro lugar. Devem, no entanto, ter acentuado o seu carácter residencial, pois aqueles Pereiras fizeram do castelo o seu solar, para o que de resto já estava, como vimos, mais ou menos adaptado, e o interesse militar da fortaleza era cada vez menor.

Dessa residência ainda agora se vêem sinais evidentes, não só na torre, que pela sua grandeza não seria já só de simples menagem, mas também fora dela do lado nascente. Esta torre era e é interiormente dividida em três pavimentos, faltando só a colocação do soalho do último. Dispõe este de duas janelas, uma a poente e outra a nascente, vendo-se junto desta uma lareira de aquecimento e à sua volta restos de embuçamento pintado, de aplicação certamente tardia, mas não se lhe percebe quaisquer sinais de divisórias. Comunicava com o pavimento médio por uma pequena escada em caracol encostada a uma espécie de oratório, que este pavimento possuía entre as duas janelas viradas a nascente, e também acoplado à escada de entrada. Era este pavimento médio o andar principal da residência, com possivelmente quádrupla função de sala de recepção, de estar, de refeições e de oração. Tinha ainda uma janela virada ao Norte e algumas lareiras de aquecimento e, no canto Norte-poente, embutido no respectivo torreão, um grande forno para cozinhar.

No pavimento térreo situar-se-iam as cavalariças e outras arrecadações, mais tarde instaladas, pelo menos parcialmente, numa construção no Lado poente da praça de armas. No solo da torre de menagem existe, cavada, uma cisterna para armazenamento de água da chuva, recolhida no eirado que, sobre a cobertura ogival de pedra, encima a torre, e daí conduzida por canalização própria talhada na parede. Tal eirado, com quatro torreões, de onde se desfruta belo e larguíssimo panorama, estava ligado ao pavimento médio por uma escada em caracol, embutida no torreão Norte-nascente que por isso, propositadamente, não está situado com os outros ao canto da torre.

É bem possível que desde velhos tempos os condes prolongassem a sua habitação até fora da torre do que, agora, só restam pedaços de paredes e inícios de abóbadas em tijolo, restos esses que não permitem reconstituição mas, a ajuizarmos por algumas fotografias antigas, não teriam essas salas grande valor. Mais tarde o conde da Feira, D. Fernando Pereira, naturalmente porque as acomodações, mesmo prolongadas, já não correspondiam às necessidades da época, mandou fazer novo edifício no lado nascente da praça de armas, hoje inexistente, para a qual apresentava diversas janelas de sacada sobre uma arcaria ao rés-do-chão. Tudo isso, porém, chegou até nós completamente danificado não só pelo abandono a que deve ter sido votado o castelo depois da extinção da casa titular da Feira, mas também por causa de um incêndio que destruiu os edifícios, deixando só de pé a torre de menagem e algumas muralhas, incêndio esse acontecido em 1722, de origem suspeita. Daí em diante iniciou-se a última fase da  ruína, apressada por muitos motivos e / 47 / até pela retirada de algumas cantarias para diversas construções em outros locais, como se aquelas pedras ensalitradas de história não fossem mais que simples alvenaria comum de qualquer pedreira. Mas isso aconteceu mais ou menos por toda a parte, e vá lá que este castelo não foi dos que, nesse aspecto, mais sofreu.

Com o desligar dos últimos liames oficiais, em meados do século passado, ficou de todo abandonado, sendo até as casas nele existentes alienadas em 1837 pela Fazenda Nacional. Foi essa situação corrigida mais tarde, mas nem por isso melhorou a sorte do castelo. Continuava a desconjuntar-se.

Quando as heras, as silvas e os arbustos encarniçadamente desarticulavam as últimas paredes existentes, alguns feirenses reuniram-se e, à sua custa, começaram obras de limpeza e conservação. Tal movimento frutificou, outros se lhe juntaram, e daí surgiu uma comissão que, com coragem e entusiasmo, meteu ombros a mais largas obras de restauro – movimento esse em que a Vila da Feira serviu de exemplo, como verdadeira pioneira que foi do que, muito mais tarde, se generalizou a todo o país, graças à grandiosa obra que neste sector ultimamente se empreendeu, e da qual este castelo por sua vez também veio a beneficiar. Nessa altura surgiu de entre uma parede uma velha ameia, de traça primitiva e anterior ao restauro feito no século XV, que se supõe mais ou menos coeva da fundação da nacionalidade.

Isso permitiu ao Dr. Henrique Vaz Ferreira, de acordo com a sua interpretação atrás referida, junto dela afirmar, cheio de entusiasmo, que aqui nasceu Portugal, o que constitui mais um motivo de orgulho para os feirenses e santamarianos, justificado na medida em que se funda no valor e heroísmo da Nação que assim ajudou a nascer, e cuja história constitui epopeia de assombrar.

JOÃO CORRÊA DE SÁ

 

 

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