Vale de Cambra, vista de Baralhas

Se a influência mesológica se reflecte nas almas, quem conhece o Vale de Cambra conhece, por força, a psicologia dos seus habitantes: a terra é verde, a gente é boa... E quer queiram quer não, tenho como certo que tais cimeiras características se aliam para emprestar ao quadro sem igual do Vale do Caima um lugar próprio na paisagem portuguesa. Lugar próprio e inconfundível.

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Quatro estradas lá levam o romeiro: três delas, rasgou-as o homem no emaranhado de cerros e córregos para que o viajante súbito se debruçasse sobre o vale e a sua vista contemplasse extasiada esse enorme açafate de verdura em cujo fundo se espreguiçam − mansas e pasmadas de belezas que não querem deixar − as águas do Caima, do Vigues e do Moscoso; a outra, é uma estrada de sentimento, rota da saudade dos que, galgando de ímpeto o espaço, olham de longe, no «ecrã» da memória, sítios e pessoas queridas. Das primeiras, parte uma de Azeméis, outra de Arouca, outra de S. Pedro do Sul: e cada uma delas tem seus miradoiros deslumbrantes respectivamente nas Baralhas, em Algeriz e no alto de Currais, sítios de onde, num relance, se abarca quase toda a paisagem do Vale. A outra rota, a do sentimento, essa não olha apenas o / 115 / quadro geral: desce ao pormenor da paisagem, do costume e da lenda; evoca o passado e ambiciona digno futuro, para que dessa meditação saia, alto quanto possível, o sentimento de bairrismo.

Margens do Caima, Entre-Pontes e CoelhosaPor essa estrada, faço esta romagem espiritual, levando no bragal das lembranças os velhos forais de D. Dinis e D. Manuel I que regeram a administração local; a ideia das veneráveis escolas que padres e conselheiros devotadamente criaram e foram berço de grandes vultos; o nome daqueles cujo esforço se encaminhou sempre no sentido do progresso local; e todo o conjunto subconsciente que forma e define a gente boa, sã de corpo e alma, que, abrigada de todos os ventos, pacientemente realiza os melhores sonhos da sua vida em termo de Cambra.

Encontro-me nas Baralhas: quero matar esta sede interior de chegar ao pormenor para explicar o que aqui me trouxe, e, se puder, mostrar ao leitor − ou melhor, ao viajante − o que a Natureza põe ante os meus olhos. Este é o clássico proscénio donde costumam apresentar-nos o Vale de Cambra aqueles viajeiros que, afeitos ao belo, se não cansam de elogiá-lo; Raul Proença, Sousa Costa, Joaquim Leitão, Ferreira de Castro e todos quantos, por escrito ou em conversa, têm comparado o lugar a mágicos miradoiros da Sabóia: nem falta aqui a serra adusta, com suas neves invernais, nem os esquece o tapete verde dos campos ribeirinhos. E que nos esconde a serra, lá no alto? − E que nos escondem o campo fértil e as casitas que se estendem pelas encostas, no meio de aidos floridos, onde se segredam amores nas desfolhadas e se contam lendas, nos quinteiros de abróteas, em sestas de estio?

Da serra, suas ermidas e horizontes, falou por nós Ramalho, o primeiro turista português, em carta escrita a Alberto de Oliveira, onde confessa ter dormindo na Freita, ao relento, por amor à terra portuguesa. Lá do alto nos trazem também seus segredos, estonteadas pelas quedas, as águas que reverdecem o Vale.

Nos casais humildes como nas casas de lavoura, cujo dono dá filhos aos estudos, lá se esconde essa peculiar característica do povo de Cambra − meditativo e saudosista, espelho da paisagem virgiliana que o rodeia. Nevão na Serra - Alto de CurraisAlém da paisagem, porém, parece ter influído no carácter dos habitantes desta região um acentuado fundo lendário, de encantamento e superstição, de que não podem divorciar-se, feitos que a imaginação popular aqui localiza, todos relacionados com o domínio árabe na Península. Em defesa desta tese, fácil é argumentar que, ali mesmo à ilharga das Baralhas, como em Arões, restos de castros romanos, redutos de luta, atestam o fundo verosímil da lenda, dando-lhe encantadora actualidade. Do Vale do Caima teriam os moiros querido fazer um lago, fechando-o na garganta do Barbeito. Da sua existência e regras de vida fala o «sino da moira», grande penedo escondido nas brenhas da Feiteira, a caminho na Senhora da Saúde − cujo toque anunciaria aos discípulos do Corão o pragmatismo da sua vida misteriosa.

Bailam ainda, por estes sítios, em noites serenas essas evocações das «mil e uma noites»...

− Sobre o pitoresco da lenda e da paisagem do Vale de Cambra desce o pano de fundo da curiosidade dos que o não conhecem e a quem é preciso mostrá-lo...

Manuel Henriques Gonçalves
 

 

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