Sinos que repicam alegremente na MurtosaProcissão

AQUELA faixa da Beira-Mar, entre Douro e Vouga, em que se talhou metade do distrito de Aveiro, foi chamada, desde antigos tempos, terra de Santa Maria.

Constitui ainda problema histórico saber-se de onde lhe proveio esse nome. Seria da invocação de um templo? Seria da devoção de um conquistador? Seria da doação de terras a algum instituto dedicado à Virgem?

ProcissãoDesde os primórdios da Reconquista, foi célebre em toda a Galiza a igreja de Santa Maria de Lugo contemplada em testamentos, visitada depois das batalhas pelos reis asturianos, e nem sequer eclipsada, mais tarde, pelo esplendor de Santiago de Compostela. Ora, creio que foram homens da Galiza, assim devotos da Padroeira da sua catedral, quem veio, por fins do século IX, repovoar esta região que de Santa Maria tomou o nome. E creio também que daqui procedeu, por devota ampliação, a ideia de chamar a Portugal inteiro Terra de Santa Maria.

Deixando por agora a demonstração histórica, descabida talvez nestas páginas, baste notar que tem profundas raízes nos séculos o culto da nossa gente à Virgem Mãe de Deus. Com o tempo, tudo veio a afeiçoar-se ao jeito de tal devoção, desde o cimo dos outeiros às praias brancas do mar, parecendo que da própria natureza se eleva essa nota espiritual.

Notou Chateaubriand, há um século, como a paisagem busca harmonizar-se com os tempos, a ponto de poder classificar-se de pagã uma paisagem e outrora de cristã. Nesta Beira-Mar é mariana a paisagem, porque a Virgem se constituiu madrinha de todos os montes e colinas, e todos os olhares encontram, para onde quer que se volvam, templos seus. Do seu alto miradouro branco, sobre fundo de lilás, a Senhora da Saúde da Serra domina a maior parte da região voltada ao Oceano, mas a orla marítima e as margens da Ria confessam o mesmo senhorio, com seus santuários dedicados à Senhora da Graça, à Senhora de Entráguas e à Senhora das Areias.

As invocações percorrem ou preenchem toda a escala do sentimento; predominam, todavia, as que pedem auxílio em lances dolorosos. Se determinados aspectos da vida acabam por imprimir traços característicos na fisionomia do povo, não admira que da luta com o mar resultassem também expressões religiosas, peculiares à gente do litoral.

Rara será a casa onde se não lembrem / 69 / de rezar à noite «pelos que andam sobre as ondas do mar, para que Deus os traga a porto de salvamento». Mulheres e filhas dos marítimos tiveram todas ao menos uma hora em que as ondas lhes pressagiaram desgraça, e elas instintivamente recorreram ao Senhor e à Senhora dos Aflitos.

Retábulo da Capela dos Passos na Igreja Matriz de Ovar.Pensaram eles também, os que se viram em perigo, na Senhora que através das lágrimas, lhes sorria na ermida alvejante do areal. E prometeram ir visitá-la e levar-lhe uma vela «do seu altar». A recordar essa hora, lá fica, às vezes, ingénuo painel representando um barquinho com as velas desfeitas, homens ajoelhados em prece e a Virgem a aparecer, entre nuvens, com o Menino ao colo. E tudo se resume em breve legenda: «Milagre que fez a Senhora da Nazaré…»

Quase todos os barcos têm nome, um nome religioso. Nas festas da Senhora, é frequente levarem a imagem em procissão até junto das ondas. Ei-la a contemplar o seu vasto domínio azul. Calam-se as músicas, que o momento é de silêncio diante de tal majestade. Os homens das «companhas» recolhem-se meditativos. E a bênção desce sobre os barcos, sobre as ondas.

O espírito cristão que inspirou estas e outras manifestações de piedade popular, não há que pô-lo em dúvida. Se reduzíssemos tudo a sentimento, que motivos poderiam explicar o alto nível de moralidade que ainda se observa em toda esta zona ribeirinha?

Debaixo de uma simplicidade e rudeza, comparável à dos Bretões, a cuja fé se declarou chegado um sábio de muito estudo, guarda o povo da nossa Beira-Mar um conceito optimista do mundo e da vida, uma noção elevada da moral e da autoridade e, sobretudo, uma grande capacidade de resignação.

Fé que depende em muito do sentimento?

Nesta hora do mundo, parece que só deve lamentar-se que não haja muitos aldeãos como aquele de que fala o Mistral na Mireia e que mereceu pendurar o seu capote num raio da luz do sol...

Padre Miguel de Oliveira

Procissão da Primeira Comunhão em Espinho.Procissão

 

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