O
sol ainda agora vai a passar para o lado da lomba. Na restinga do sul,
junto ao muro de pedra encarnada de Eirol, os moliceiros endomingueirados, cheios de bandeiras nas velas, nos mastros,
encalhados uns com os outros numa abordagem bárbara de saias vermelhas,
de baetas a cores, iluminam dum friso de coreia a orla azul das águas.
Por cima do azul da ria coalhada de novas velas, do azul exagerado do
céu, o grito das vozes é ainda mais luminoso. E as próprias proas dos
barcos, como fogos de artifício, com flâmulas, na ornamentação do bazar,
gritavam também com todo o sabor da sua má ortografia as suas graças
pintadas pelo ti Patrão de Ílhavo ou pelo mestre Sueco de Pardelhas –
Ora arreda que tispeto. Mas até as lindas proas iam desaparecendo na
poupança da carestia e mais de metade não tinham já senão o branco da
proa e da ré à espera, no loiro da madeira nova ou no embreado da
calafetagem, fora o número de matrícula, bem branco de aIvaiade, com que
os cabos do mar mais implicam por mór das licenças da Capitania.
Podiam as terras safar-se, escassear o moliço até nas
coroas cheias de borrelhos e maçaricos, que isso eram coisas para
esquecer, agora que as cantigas e a música enchiam os corações daquela
gente que vinha da Torreira e da Murtosa ou, do outro lado, das Gafanhas
e da Vagueira até aos Covões de Mira, pulando em riba das proas largas e
enfiando na água, cor de vidro de garrafa nas sombras, as pernas sólidas
e encarnadas, nuas para cima do joelho.
Recortado num painel de lençol forrado de medalhas, de
bentinhos, de registos, contra o passeio, um rapaz untuoso não tem mãos
a medir para servir os matolas daqueles enfeites com que cobrem as
lapelas e os chapéus. Os botequins estão vazios, cabeceando de sono a
rapariga da gaforina mal penteada que toda a noite, no arraial, aceitou
galanteios e calicezinhos de anis e cafés de apito. Só as doceiras de
Ílhavo, em fila nos passeios, estão a fazer negócio com os banhistas,
vendendo bolos-brancos e flores de papel com penas coloridas. Ouve-se
uma voz perguntar:
– Eu queria daqueles mais pequenos. Como é que eles se
chamam?
– Beijinhos.
– Ah! Beijinhos... – E a voz troca-se por uma risada
feliz. /
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Mas, de súbito, há um sussurro extenso alastrando,
ouve-se confusamente, diluída na atmosfera límpida, a marcha lenta da
música da Patela, marcada pesadamente pelos metais das trompas e dos
contrabaixos. E surgem, do lado do Norte, as primeiras opas brancas com
murça verde-mar, da procissão. São os irmãos da Senhora da Saúde, depois
os da Senhora da Encarnação da Gafanha, os banheiros, o Pataneca, os
Ferreirinha da Companha, que levam as varas de mordomos, o pálio e o
andor da Senhora, forrada de cetinetas baratas cor-de-rosa e
azul-celeste com ornatos de lantejoulas. Um rapaz dos Caseiros que
prometeu ir assim se se livrasse nas sortes vai carregado de espingardas
caçadeiras, obra para aí de meia dúzia em cada ombro e todo o caminho a
andar de costas, amparado por um companheiro que já pagou outra promessa
igual no ano passado. Três raparigas da Encarnação, com pele de maçã
camoeza nas faces redondas, vão amortalhadas em gaze de mosquiteiro
sobre os vestidos de piqué, amarelo-cidra, segurando, com mãos de pegar
em enxadas e engaços, círios da sua altura, delgados como canas de
foguete. E um dos anjinhos, quase nu, com o decote do fato de banho
marcado a trigueiro de sol na pele, vai pela mão dum homem de brandão e
opa, perriçando que quer colo.
… Até o homem dos chupa-chupas, com a sua grande
massaroca de papelinhos de cores, que ainda há um instante gritava: «lá
vai, meninas, lá vai», deixou a sua lenga-lenga e está além, de joelhos,
silencioso e recolhido. O próprio barqueiro, outro no lugar do falecido
Labareda, apesar de se estarem apertando as horas de largar, deixou de
tocar a seu búzio de tritão mugedor e está de mãos postas e olhos
húmidos na imagem da Senhora, de feições redondas e tão saudáveis como a
mais esmerada gafanhoa da sua idade.
Mas atrás do andor da Padroeira, depois do Santo Amaro de
barbas e muleta, outro andor que vem aos ombros dos gafanhões da companha trás aquele barco-do-mar, como um brinquedo de criança... cheio
da sagrada companha dos doze apóstolos, distantes e santíssimos
camaradas da
Tiberíade azul, toscamente talhados em madeira por
imaginário de presépio e coloridos sabe-se lá por quem! No lugar do
arrais, S. Pedro bota as redes enquanto, sentado na proa, Jesus abençoa
o mar.
Um barco-santo! S. Barco-do-alto, advogado da fome! Um
doce barco de bico-de-gaivota, com os santinhos ao cano-do-remo, onde
Judas vai tão apegado à voga que nem se lembrava, com certeza, ainda, de
vender o Mestre, e S. João de revezeiro da proa, de remos parados mas
aos galões, às upas, como num mar de alevadia, sobre o mar de cabeças
doiradas pelo sol como as imagens ingénuas dos bilhetes-postais de
boas-festas, sem medo a nenhuma rebentação!
De «A última sereia»
Celestino Gomes
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