As tabernas sempre foram importantes
espaços de tertúlias, de encontros e desencontros, de zangas e amizades,
de refúgio e abrigo aos mais frágeis, de alegrias e tristezas e também
de sofrimentos e misérias humanas.
Lugares que durante décadas do século
passado representavam para uma população, sobretudo pouco instruída, mas
culta de saberes, salutares casas, quando os excessos do vinho e outras
bebidas com álcool não inquinavam os relacionamentos.
A motivação para dar corpo a este
trabalho advém da minha curiosidade e das visitas aos fins de semana a
estas "capelinhas", que fazia pela mão do meu saudoso Avô João Maria
"Cochicho" monárquico, defensor da Causa Real, – o meu Avô tinha outra
actividade para equilibrar o orçamento familiar, comprava e vendia sacos
de serapilheira, que sobravam a uns e faziam falta a outros – durante a
minha meninice dos sete aos doze anos e que me marcaram indelevelmente.
Algumas senhoras diziam: "Meu menino, vens tomar conta do teu Avô!".
Aí discutia-se de tudo – em surdina a
política, não fosse o diabo tecê-las (sob o medo da polícia política) –
da religião ao futebol, dos bons e maus costumes e das vivências de uma
urbe ordeira, onde predominava a tolerância e o civismo.
Em Aveiro ficaram célebres, de entre
outras, as Tabernas: do Zé Bissa / 14 / com entrada pela rua dos
Marnotos e saída pela rua do "Sol", rua Sargento Clemente de Morais; a
taberna e restaurante do António Pinho Nascimento, este com duas
frentes: para o Largo da Praça do Peixe e para a Rua dos Lavadores; a
taberna do Jandana, denominado Centro Democrático Eleitoral de Aradas,
na rua Direita, onde se reuniam à mesa, sobretudo em vésperas do 5 de
Outubro e no próprio dia, republicanos, liberais, opositores
democráticos e católicos progressistas, tudo em ambiente hostil, mas
assertivo, ao Estado Novo de má memória.
Inúmeras são as histórias ouvidas e
gravadas na memória, sobre diálogos de tertúlia com refinado realismo e
sentido de humor, travados entre momentos de paragem de trabalhos e
afazeres diários e o regresso a casa.
Para muitos fregueses destes
estabelecimentos, estes refúgios e os seus proprietários funcionavam
como uma família, que por vezes não tinham.
Muitas tabernas não se limitavam a vender
vinho e acumulavam a função de mercearia, armazenada em tulhas e loja de
frescos, sobretudo leguminosas, batatas e fruta. Algumas tinham pia de
demolhar bacalhau, vendido às postas, cujo preço era fixado com marcador
azul, tudo a par também com a bomba e depósito de petróleo para
candeeiros de iluminação e máquinas de cozinha e ainda o mecanismo para
bombear, do depósito, o azeite.
As famílias abasteciam-se quase todos os
dias e a conta invariavelmente era para assentar no livro, cujo valor
era liquidado ao mês ou à quinzena, consoante o homem ou a mulher
recebiam os salários dos seus ofícios e serviços.
A concessão dos créditos e o seu risco,
era avisado pelas célebres máximas "aqui não se fia", "se queres fiado,
toma", e "eu dei crédito, eu não dei crédito" e outras similares, avisos
cujas estampas estavam afixadas em local bem visível e bem elucidativas
para a freguesia; não temos memória de que alguma taberna tenha falido.
É do conhecimento de muitos que havia
perdão de dívidas aos fregueses com famílias numerosas, por parte dos
proprietários, mas também – poucos – os que veladamente subtraiam uns
tostões, acrescentando-os ao "livro" como consumos.
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Para a criançada que ia aos recados aos
Pais ou Avós o fascínio eram os frascos de rebuçados, os cartões de
furos que atribuíam os prémios expostos, as colecções dos bichos da
Selva e da Vitória – com os carimbados: o cabrito, o bacalhau e a cobaia
– os cartões de furar da Regina cujos chocolates eram uma delícia bem
como os guarda-chuvas e as mini-tabletes da Avianense, os cromos do
futebol, sendo que os trocados menores de tostões eram repostos por
rebuçados, ainda que sujeitos aos ralhetes dos familiares.
Não raro era haver em prateleira, qual
altar, uma imagem de Santo António com o Menino nos braços ou outro
orago da devoção dos proprietários, sob a prece para que o negócio
corresse pelo melhor, muitas vezes alumiado por lamparina de pavio a
azeite.
Desportivamente muitas tabernas tinham
afixados recortes de jornais e revistas com os Clubes da simpatia dos
donos e dos fregueses, sobretudo das equipas de futebol e também do
ciclismo, com todos os heróis da bola e da volta a Portugal. A
freguesia, simpatizante dos clubes expostos em lugar de destaque,
acabava por fazer de "casa" essas agremiações: "Os Belenenses", os
Sportinguistas, os Benfiquistas, os Portistas e os do Beira-Mar, quase
que por esta ordem, constituíam o altar das paixões de muitos; "santos
da casa não fazem milagres" e o Sport Clube Beira-Mar as mais das vezes
era relegado para segundo plano.
Pendurado na ombreira da porta destas
casas havia um toco de vassoura ao qual era amarrado um ramo de louro e
um garrafão vazio de vinho para chamar a atenção dos passantes.
A Cidade de Aveiro e arredores
contabilizava na década de sessenta mais de cem tabernas aqui enumeradas
e seriadas geograficamente, nesta recolha de memórias pessoais, das
Famílias e de amigos, que contemplam fotos de fregueses e tertúlias e
que constituem memória de uma economia local que foi perdendo pujança
com o evoluir da sociedade e da consequente alteração de costumes.
Globalmente extinguiram-se, no entanto há
ainda umas poucas que mantendo o nome inicial ainda perduram e outras
ocupam nos mesmos espaços actividades com outra designação e fim social,
e ainda muitas onde sobra só o edificado, em estado de degradação.
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Lançado o repto a muitas famílias
proprietárias destes estabelecimentos, para integrarem as suas memórias
dos espaços, artefactos e pertences e, sobretudo de histórias de
humanismo para com a clientela e desta para com a urbe, também
brincadeiras e estórias com humor, foi com muita generosidade, amor e
alegria que se envolveram neste trabalho de reavivar e não deixar cair
no esquecimento extractos de uma economia que a pouco e pouco se finou,
por uma radical mudança de comportamentos e de práticas.
As memórias e histórias das famílias
estão aqui a dar corpo e a enriquecer este livro, sem elas ficávamos
pelos nomes e geografia, o que seria manifestamente pouco, perdendo-se
no tempo este historial, que se releva desta forma.
Por último, mas não menos importante, foi
a vida de muitas mulheres, – "activas como a abelha, como cigarra
cantadeiras, e previdentes como a formiga" (Leitão, Nascimento - 1944) –
referências vivas destes espaços, que definiam o negócio e lhes
emprestavam a alma – sendo a presença física dos homens sobretudo para
dar respeito – e que aqui são trazidas em memorial: Ti Ana, Idalina,
Francelina, Alexandrina, Magarefa, Alegria, Laura, Aida, Maria Isabel,
Gracinda, Luz, Alice Cabica, Antónia, Maria alga, Emília, Maria Bispa,
Glória do Russo, Maria Adelina, Graciete, Dores, Cândida, Maria Dias,
Maria Alice, Elvira, Palmira, Maria José, Camila, Carolina, Maria da
Luz, Felicidade, Marquinhas, e muitas outras, tantas quantas as tabernas
enumeradas.
As primorosas ilustrações e a cromática
paciente com que o Armando Regala nos brindou, mais valia que se saúda,
remetem-nos para os ambientes de antanho, suportadas numa extraordinária
memória visual e imaginação, completam este projecto de evocar uma
economia familiar de décadas, espaços que albergavam tertúlias de gente
laboriosa de todos os ramos de actividade, que desapareceram quase por
completo da nossa Cidade de Aveiro.
Bem haja pelo de contributo de todos.
Manuel Pacheco
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