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4ª Série - Número 4 - Maio de 2001 - pp. 108-109

 

José Pereira Tavares

■ Cecília Sacramento


Os outros só liam o nome e o número.

 

E aquele professor, na minha primeira aula de Português, a ler na caderneta o meu nome, a perguntar-me onde eu vivia, como vinha para Aveiro todos os dias. E parar um pouco, ante a minha resposta a esta última pergunta. E depois a falar do meu nome e a contar à turma a história da Santa Cecília, lá de longe, do tempo dos romanos, e do muito que ela dava nas melodias que entoavam nas catacumbas para os que sofriam as perseguições por serem cristãos. E aqui parar a explicar o que eram catacumbas e o porquê de nelas se refugiarem homens e mulheres que nenhum mal faziam, antes o bem. Depois, continuava no nome para dizer que essa mulher tanto dera aos que sofriam, em momentos de beleza, com os seus cânticos, tanto se expusera, por isso, a ser perseguida, que acabara barbaramente martirizada às mão dos seus perseguidores. E assim passara a ser chamada Santa Cecília. E que de há muito era considerada a advogada, a patrona, a protectora da música e dos músicos.

E sorria-se para mim, depois de ter contado tão linda história. Como quem dizia que eu tinha um lindo nome. E eu envergonhada, ali desadaptada, mas um enlevo a percorrer-me, na minha pequenez comovida.

Foi assim que conheci este grande Mestre, que para todos os alunos tinha palavras de humanidade e simpatia, mesmo no simples acto de ler as folhas de uma caderneta escolar. Foi assim que para sempre fiquei ligada a ele por uma enorme admiração e por uma grande ternura, quando ainda nem sequer sabia o que era ternura. De facto, «sentir é coisa mais profunda que saber».

Vinha da escola primária, que se reduzia a uma única sala, a uma única professora, a umas dezenas de alunos das várias classes, postas na tal mesma sala a aprenderem e a ensinarem-se uns aos outros, na familiaridade. E via-me assim caída numa grande escola, que nem escola se chamava, tinha o nome pomposo de liceu. Com muitas salas, muitos alunos meus desconhecidos e sobretudo com professores que de hora a hora se sentavam àquela secretária, cada um para ensinar cada disciplina, quando na minha outra escola a mesma professora ensinava tudo. O meu espanto, a minha timidez, a sensação de que não estava numa escola, mas numa outra coisa muito mais complicada e muito superior às minhas forças.

E numa primeira aula, sem eu entender, veio aquele professor e tudo se começou a humanizar.

Não posso contar como este deslumbramento se foi cimentando através de muitas aulas, pois tive a felicidade de ter este Mestre durante os sete anos do curso, primeiro em Português e depois em Latim. Não posso contar como cada aula era desejada, era fruída, era depois uma grata recordação. Aula-convívio, aula-aproximação, aula-relâmpago. Nunca um berro, nem sequer um altear de voz. Nunca uma deselegância. Nunca um amesquinhar. Antes e sempre um / 109 / estímulo a ficar em nós, uma proximidade professor-aluno exemplar. Extraordinária. E as aulas decorriam num clima de tranquilidade, sem sobressaltos, mesmo nos testes, eram uma conversa em que o mais velho de nós aproveitava a oportunidade dos textos, pelo apontar daquilo que os faziam belos ou curiosos ou interessantes, o tema, a escrita, a urdidura, o vocabulário, a ironia, a leveza formal, as ideias, as personagens, os diálogos. E mais: pelas histórias que, a propósito deles, aqui e ali contava, uma peripécia, um pormenor, do autor, da época, do assunto, a transmitir habilmente a verdadeira cultura.

«Os Lusíadas» – qual divisão de orações em catadupa, sistemática, enfastiante? Apenas, aqui ou além, para buscar a clareza difícil de achar pela nossa pequenez, apenas a preocupação de elucidar a construção do período e de pôr em relevo, por exemplo, a oração principal do mesmo, para mostrar como as outras, as subordinadas, se encadeavam nesta. E outras coisas formais, de certo modo básicas para seguirmos o fio condutor do discurso poético e aí o ver, profundo e eloquente. Mas tudo temperado, como o sal na comida. Com a mestria dos verdadeiros pedagogos. Porque o que fundamentalmente acontecia era sermos conduzidos, sim, para as grandes linhas do poema e para a sua força, que eram a soma de tantas marcas de talento: as harmonias linguísticas de belos versos, o desdobrar do ímpeto poético dos grandes episódios, o génio com que erguia as figuras que perpassam no poema, como uma Inês de Castro, um velho do Restelo, um Vasco da Gama, um Nuno Álvares Pereira, etc., etc. Até um assombroso Adamastor, até a graça de um «Veloso Amigo». «Os Lusíadas», com o seu sopro de génio e a força da sua beleza, sempre sublinhados pelo Mestre, ficaram bem como um marco na nossa caminhada cultural. A enriquecer-nos. Nunca a enfadar-nos.

Perto do 5.º ano, começámos o Latim. E a mesma subtil arte de ensinar. Uma língua tão diferente das outras já conhecidas nossas – e tudo ia sendo apreendido com o método, o desfazer de dificuldades, o atender ao fundamental. E a temperá-lo, ao método, à progressiva descoberta, havia as historietas que, a propósito de certos vocábulos, certas expressões, certos passos, contava. E essas historietas, precisamente pelo seu carácter lúdico, ajudavam a fixar para sempre coisas fundamentais da língua latina. Quem não se lembra do «busíllis», do «Apparent rari mantes in gurgite vasto», do «Quosque tandem, Catilina, patientia nostra abutere»? Do «Mons Parturiens»?

O grande Mestre. O grande Amigo. Não quero alongar-me, mas lembro apenas o que significou, o muito que significou para Mário Sacramento ver aparecer-lhe, um dia, o seu velho Mestre a oferecer-lhe o Caderno Diário de Português, que guardara quando fora seu aluno. Pelo muito que nele encontrara. Coisa que só os grandes professores encontram. E que só os maiores guardam.

Lembro apenas mais nós quatro, a Nereida, a Generosa, o Zé Santos e eu, lembro a nossa alegria, ao vermos aparecer-nos o nosso querido Professor, em Coimbra, no nosso primeiro ano universitário, a visitar-nos, para nos abraçar e nos levar o ânimo. Como só os grandes, raros Amigos fazem.

Que felicidade não foi ter encontrado no meu percurso este Homem. Este Mestre.

Este Amigo.