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4ª Série - Número 3 - Dezembro de 2000 - pp. 51-56

 

Arsélio de Almeida Martins

 

Acho que foi muito importante as pessoas ouvirem-se umas às outras. Há coisas que nós não sabemos, mesmo quando participamos nos acontecimentos. Ao ouvir as pessoas, percebi que não tive uma boa parte dos problemas que as pessoas têm ou tiveram. Tenho estado aqui a tentar descobrir porque é que isso aconteceu. Eu tive um percurso completamente diferente. Estava a tentar dizer por que raio é que eu estive muitas vezes na gestão, e a explicação para isso é porque era preciso, porque é a minha vida, porque fui empurrado para isso e não sei quê, mas o que é que leva fundamentalmente um tipo como eu, que sou professor de matemática e nunca desisti de ser, a fazer aquilo a que se chama habitualmente um "frete"? Porque é uma coisa sempre secundária na minha vida.

Com 17 anos, 18, comecei a trabalhar, no que diz respeito a opções políticas, na Universidade de Lisboa, aparentemente à volta da extrema-esquerda, mas em grupos de apoio pedagógico e num centro de estudos científicos de estudantes da Faculdade de Ciências de Lisboa. Desde o primeiro ano da universidade, a minha vida passa sistematicamente pelo associativismo militante, pelo lado das questões pedagógicas. Começo a minha vida activa, devo dizer adulta, como militante associativo ligado à extrema-esquerda, mas sempre nos sectores pedagógico e científico. Quando a minha faculdade se radicaliza brutalmente, esta acção científica e pedagógica praticamente deixa de existir para só haver grandes confrontos com a polícia, eu já me mudei para o Porto. A minha família mudou-se para o Porto e eu com ela. Saio do grupo dos meus amigos. Desde cedo, trabalho muito mais agarrado a pessoas naquilo que é fundamental do que agarrado a ideias. No Porto, o movimento estudantil é todo clandestino, não há nada que seja legal; e eu passo a um movimento muito recuado, em que é necessário trabalhar sistematicamente com os estudantes a nível muito recuado, pedagógico – matemático. Agora é uma militância pedagógica dentro da Universidade como militante associativo, e, como é natural, e fui dirigente de uma Associação de Estudantes em listas de unidade de esquerda e em listas da extrema-esquerda, Como estudante, / 52 / o meu trabalho é sempre ligado a questões pedagógicas. No fundamental, a minha formação é toda de trabalhar com os estudantes na área pedagógica, e é da política em segundo plano.

Quando vou para professor, vivo todos os passos: tenho que fazer as Ciências Pedagógicas nas Letras do Porto, colocado em Vila Real, para ganhar nas férias. Sou um activo professor, defendendo as minhas ideias desde o início, morrendo sempre pela língua... Nunca tive calma suficiente para seguir os tais conselhos do Dr. Aurélio que é "Cala-te boca, que é para não te tramares". Eu morri sempre pela língua, morria antes no movimento associativo estudantil, e muitas vezes depois como professor.

Mas percebe-se então o que é que se passa. O que se passa é que eu passo para a profissão docente. Depois de passar pela tropa, em Novembro de 1975, entro na vida das Escolas como vivia no movimento associativo. Logo em 76, depois de um ano a fazer barulho, sou candidato a um Conselho Directivo, por razões de coerência interna à escola e externa em relação às opções políticas que defendia. A primeira vez que concorri às eleições foi na Escola Secundária Filipa de Vilhena. Ao fim de um ano de ter dirigido assembleias e essas coisas todas, não tive outro remédio senão formar lista. Felizmente fui derrotado, porque, com o meu temperamento religioso, se não tivesse sido derrotado, e fui derrotado por muito poucos votos não tinha ido fazer estágio, porque com o meu feitio, se eu tivesse ganho as eleições ainda agora era professor provisório, provavelmente, nunca mais tinha conseguido equilibrar o meu barco, ou tinha saído do ensino. Fui fazer estágio num Liceu Garcia de Orta, onde havia agressões, caceteiros, sistematicamente, havia o bairro chinês e havia os meninos da Foz, que andavam sempre à pancada. Nesse tempo era professor, mas não gostava que me apalpassem mesmo sendo estagiário. O que mais me marcou nesse tempo foi a violência gratuita e a perda de invariante dos estudantes em relação aos professores, em relação à organização, etc.. Não tendo vivido nas Escolas nos dias do 25 de Abril, porque estava na tropa, espantou-me a grande violência nas Escolas do tipo do Garcia de Orta. Era um problema que me preocupava muito, fiz muitas intervenções no Garcia de Orta, apesar de ser estagiário, e trabalhei muito no sentido de equilibrar disciplinarmente / 53 / aquela escola. Finalmente, tive duas felicidades juntas (a minha mulher engana-se sistematicamente nos números e fomos parar a Santo Tirso). Uma vida bucólica. De noite andava pelo Vale do Ave a ver e a repintar a paisagem e de dia dava aulas no Liceu de Santo Tirso. Depois de Santo Tirso, vim parar à Escola Secundária de Aveiro, que nessa altura existia com um ambiente um bocado a que não estava habituado. No Garcia aquilo era muito violento, mas o corpo dos professores era muito unido, conseguíamos defender-nos uns aos outros, embora, nas votações as pessoas se dobrassem ao peso dos papás influentes.

Na Escola Secundária de Aveiro, a Isabel Cerqueira passa-me o lugar dela de Coordenador de Directores de Turma para eu poder ir para o Conselho Pedagógico e no fim daquilo candidato-me ao Conselho Directivo numa lista que ganha; mas é esse o ano em que sou expulso de um partido político e vou sair de Portugal num concurso para cooperantes: com a minha família (e a do Alcino Cartaxo também) vou para São Tomé. Quando voltei não havia horários de matemática e, para não andar lá a fazer figura de empatar serviço, concorri a várias Escolas, e fui parar à José Estêvão, numa altura em que estava em Cabo Verde na formação de professores. Ainda estava em Cabo Verde, quando o Alcino Cartaxo, que era um rapaz despachado, me disse que tinha aceitado formar um Conselho Directivo e que contava comigo. Quando chegasse já sabia que tinha um lugar no Conselho Directivo dele numa escola que nem conhecia. Quando cheguei tinha à minha espera o Alcino, que se tinha metido numa camisa de onze varas, porque não tinha conseguido arranjar. Há o episódio da Alda Gomes, a Alda aceita formar lista e eu que tinha dito que sim ao Alcino, e isso era público, não tive lata para dizer que não à Alda, que não conhecia de lado nenhum. Sem conhecer as pessoas, lá fiquei na Direcção, num tempo em que não havia tempo para pensar, porque se tinham de tomar medidas de emergência sempre. Eu lembro-me que foi um período muito agitado por causa dos ciganos, por causa da polícia, lembro-me que tive que suspender não sei quantos alunos nessa altura sem ser Presidente do Conselho Directivo. Não percebia a maior parte das coisas, tinha de agir em cima do acontecimento... E, em coerência com as minhas ideias e, pela língua afiada que tenho, no ano seguinte, em coerência com o que tinha andado a dizer, fui para / 54 / Presidente do Conselho Directivo, que tinha um antigo Reitor que conhecia mal, careca já nessa altura, com... sei lá com quem, já não me lembro de nada, com quem foi. Eram várias pessoas, o Alcino Cartaxo também lá esteve, se calhar, a Venília, várias pessoas, eu não conhecia a maior parte das pessoas. A partir daí fomos resolvendo parte dos problemas que era o preciso.

Nunca tive nem formação, mas não me posso queixar, porque de facto eu tinha andado todo o tempo num trabalho de liderança de organizações, dum ou doutro ponto de vista. A minha facilidade tem a ver com o treino, o conhecimento dos assuntos pedagógicos de há muito tempo e ter passado por muitas reformas e sempre a discuti-las. Andei sempre a trabalhar e a dirigir organizações, diferentes das escolares, mas organizações. Nunca querendo ser gestor, passei a minha vida inteira a olhar para o que os outros dizem, a organizar e a devolver o que se faz e o que se diz. A minha formação é essa, o meu papel é esse. Nunca fui a maior parte das coisas que pensam que um Presidente de Conselho Directivo é e das dificuldades que tem, sou, fundamentalmente, aquilo que se pode chamar um teórico, mas é evidente um teórico com as obrigações inerentes, quer dizer, nos momentos em que é preciso estar lá para dar o corpo ao manifesto também lá estou, faço as coisas que os outros fazem, mas não discuto muito isso, é um problema que não me preocupa muito. Tive sempre umas relações razoáveis, ao mesmo tempo conflituosas, mas muito razoáveis com a Administração. Entendemo-nos perfeitamente. Admito que é preciso explicar cuidadosamente e repetidamente, porque não presumo que alguém tenha obrigação de adivinhar, discutir muito quando é caso disso, mas não tenho muitas queixas da Administração. Eu sei que muitas vezes têm mais dificuldades ainda do que nós, à partida, que as pessoas que lá estavam e estão tinham e têm as mesmas dificuldades que eu.

Dei-me sempre bem ou nem penso muito nos problemas que não conseguimos resolver. Sempre me considerei como agente uma parte da solução do problema e não passei a vida a atribuir culpas e a esperar dos outros as soluções que eu não encontrava.

A gestão democrática, que eu penso que funciona na base de uma grande cumplicidade, foi possível fazer porque era um acordo inter-pares necessário para / 55 / fazer o barco navegar sem meios nem remos, fingindo que tem leme. É preciso haver uma grande cumplicidade entre as pessoas que têm de aguentar e viver a pobreza para funcionar e produzir alguma riqueza sobre os sacrifícios de todos. Aceito a desgraça com a naturalidade de um não resistente e é por isso que não sou nem angustiado desiludido nem optimista iludido e tolo.

Fui treinado para ir vivendo a vida, normalmente, e apanhando o que há para apanhar, transformar as ideias avulsas em discurso coerente e devolver outra vez a quem tem que fazer as coisas. Se eu tivesse de carregar comigo as dificuldades e o que não compreendo estava derreado e derrotado. Trato de apanhar o que flui das pessoas que comigo trabalham, encontrar soluções muito rapidamente, não fazer grande teoria sobre isso. Fui responsável por uma montanha de coisas que nem passa pela cabeça às pessoas atribuir a um professor do ensino secundário. A ideia principal é não me preocupar com isso, se eu estiver a trabalhar, se estiver atento, se estiver vivo e a trabalhar com as pessoas que trabalham comigo, que muitas vezes nem dão por ela. A Venília esteve convencida que eu sempre fui um grande manipulador e que decido as coisas antes, que ouço as pessoas tendo decidido antecipadamente (fingimento democrático?). Mas a verdade é que na maior parte das vezes, o que eu sei é nada e fico a saber só depois das pessoas falarem o que elas pensam que são pequenas coisitas, que depois de organizadas parecem muito; a maior parte das pessoas nem sequer percebe que são as pequenas coisitas, as pequenas sensibilidades, as pequenas coisas que se dizem e funcionam é que formam uma decisão. Sempre ouvi os estudantes de forma séria, ouço as pessoas quando não concordo e é com quem eu aprendo mais.

Isto não é para fazer passar a ideia que não há capacidade teórica e prática. Alguma haverá, mas essa preparação não é mais do que uma parte. Uma boa parte do meu trabalho depende da experiência política e do trabalho das outras pessoas. Não há pessoa nesta sala que não me tenha ajudado e a quem eu não tenha ajudado. Esta é a teia que nos torna fortes Sem isto não era possível explicar como se trabalha em tantos registos ao mesmo tempo. A maior parte também do mérito, das coisas que eu fiz não tem nada a ver comigo; em cada dia sou capaz de fazer quatro, cinco e seis reuniões, ontem fiz cinco ou seis reuniões de coisas diferentes / 56 / – a penúltima foi com a Luísa e cinco minutos a ouvir a Luísa para organizar o pensamento a devolver aos professores de S. Jacinto, que estão no ensino à distância. Tive cinco minutos para ouvir e decidir exactamente tudo o que era de decidir, tudo o que era decisão política da Escola, a partir de três ou quatro informações mergulhadas no caldo dos Conselhos Directivos. Os Conselhos Directivos são constituídos por todos os outros. As equipas que foram formadas por acordos ideológicos falharam todas. Na José Estêvão, as melhores equipas foram aquelas formadas para trabalhar sem nos preocuparmos sobre quem eram as pessoas indicadas por um conselho de anciãos.

A Escola Secundária José Estêvão, os Conselhos Directivos da Escola Secundária José Estêvão, onde eu estive, a maior parte deles, não têm nada a ver comigo, nem com as minhas concepções ideológicas ou políticas. São grupos de pessoas que foram escolhidos muitas vezes por um grupo de pessoas mais alargado com base no trabalho que iam fazendo; e algumas delas completamente antagónicas. Há duas ou três pessoas que eu vi a trabalhar com um rigor brutal, muito bem, que, à partida não fazia sentido juntarem-se, por exemplo, a Maria José Calafate e a Esmeralda Assunção. E, no entanto, é a dupla monumental, que fez uma boa parte daquilo a que nós podemos chamar a recuperação da paisagem física da Escola.

A minha ideia é que uma Escola com experiência, com tradição precisa de uma pessoa ou outra para melhorar a sua condução. Fico satisfeito quando me dizem que durante muitos anos tornei as coisas muito mais fáceis à José Estêvão.

Aqui fica o meu entendimento sobre a minha forma de estar no Conselho Directivo, descartando-me completamente de qualquer responsabilidade individual que tenha nisto, porque a minha responsabilidade individual é muito curta neste negócio e eu estou totalmente convencido, e sei que é assim, porque vivi em muitas organizações todas dirigidas do mesmo modo e onde eu fui só esse tipo que sozinho vale nada, mas facilita muito quando podemos contar com ele.