Acesso à hierarquia superior

4ª Série - Número 3 - Dezembro de 2000 - pp. 35-41

 

António Aurélio Fernandes

 

1. De uma gestão não democrática para uma tentativa de gestão democrática

O Estatuto do Ensino Liceal, em vigor no regime do chamado "Estado Novo", estabelecia que os liceus femininos seriam dirigidos por mulheres; os liceus mistos seriam necessariamente dirigidos por homens, "matéria prima" que sempre foi escassa. No ano de 1972 abriu o Liceu de Ovar, a cujo quadro passei a pertencer. O reduzido quadro apenas contava com dois homens: um estava interessado no cargo, o outro "tomara que o deixassem em paz". Dizia-se então por graça, mas com algum fundo de verdade, que o ministério (o Ministério da Educação Nacional como era designado) dispunha de duas listas a consultar para a escolha de reitores: a dos professores interessados e a dos professores não interessados; as escolhas seriam feitas a partir da lista dos não interessados... Havia ainda outra condição a preencher: o aval da PIDE! O Ministro Veiga Simão tinha, porém, decidido ultrapassar tais pareceres e nomeava quem muito bem entendia (a sua intenção era nitidamente reformar o regime a partir de dentro, só que já era tarde...).

E assim, em Setembro de 1972, fui nomeado reitor do Liceu de Ovar. Embora vivêssemos já uma época de grande desanuviamento (se tomarmos como referência os anos negros da minha infância, no apogeu do nazismo), uma coisa não era possível: "safarmo-nos" tão airosamente, como hoje, com um "está bem, mas não estou interessado"; a alternativa à nomeação era a demissão... A acentuada decadência do regime marcelista tolerava já alguma abertura, mas nada que se parecesse com a recusa em aceitar a nomeação para um cargo. Tomei posse, claro... Contava ter umas quantas "chatices", mas estava longe de imaginar as situações quentes que me esperavam nos próximos três anos!

Nos anos de 1972 e 1973 viveu-se uma tremenda explosão escolar: bastava que "as forças vivas" de uma qualquer localidade começassem um tímido pedido "nós também gostaríamos de..." e já o ministro estava a decidir "crie-se um novo liceu!". A confusão foi muita, as condições de trabalho para os responsáveis pelas novas escolas eram deploráveis, o recrutamento de professores... um drama. Pode não se concordar que a explosão escolar, que era inevitável, tivesse decorrido tão / 36 / descontroladamente, mas a verdade é que urgia recuperar de dezenas e dezenas de anos de imobilismo em matéria de educação. A escolaridade da população portuguesa estava em situação de calamidade. Na segunda metade dos anos 60 fui responsável pelo departamento de pessoal, e em particular pelo recrutamento e selecção, de uma grande empresa de "química pesada" em Estarreja: para preencher postos de trabalho de grande responsabilidade e perigosidade era um caso sério encontrar alguém que tivesse, ao menos, a 4.ª classe; e se aparecia um candidato com o ciclo (actual 6.º ano), era considerado quase um "doutor"!

O recém criado Liceu de Ovar tinha funcionado no ano lectivo anterior como secção do Liceu de Aveiro, por conseguinte, sem qualquer estrutura administrativa. O que encontrei foi, portanto, uma secretaria com armários vazios e um funcionário muito menos preparado que eu. Tive a tocante ingenuidade de pedir ao Ministério que me fosse enviada uma compilação da legislação aplicável à gestão de um liceu; claro que nem resposta tive e devo ter feito rir a bom rir os velhos "mangas de alpaca" das direcções-gerais. Valeu-me o então chefe de secretaria do Liceu de Aveiro para o cálculo de vencimentos (o mais urgente e importante!); quanto à contabilidade, segui o que me pareceu ser do mais básico bom senso: se tinha dinheiro a mais numa verba e a menos noutra, eu próprio me encarregava de fazer a transferência – evitava a praga das facturas falsas e conseguia uma melhor gestão de recursos (e dispensava a autorização do ministro das finanças...). Claro que, com este facilitismo, arranjei uma tremenda embrulhada; descobri, demasiado tarde, que o sistema salazarista de contabilidade nada devia ao bom senso ou à boa gestão dos recursos; tinha como base a desconfiança sistemática em relação aos agentes.

As coisas foram correndo sem problemas de maior, praticamente sem conflitos; é evidente que não havia uma gestão democrática, nem eu sabia o que isso fosse, por muito que ansiasse a vinda da democracia: eu decidia e o "povo" obedecia; mas a minha natural aversão ao autoritarismo levava-me a ir tentando ouvir opiniões e pô-Ias em prática, sempre que não colidissem com o interesse dos alunos.

Dois anos depois, dá-se o 25 de Abril. Poucos dias decorridos, alguém decidiu tomar uma medida muito discutível: afastar todos os reitores de liceus e directores / 37 / de escolas técnicas como pessoas coniventes com o regime deposto; considero que foi uma medida injusta e populista, para satisfazer os estudantes; muitos dos reitores e directores, especialmente os mais jovens, não eram apoiantes do regime, mais, eram publicamente "desafectos ao regime".

De acordo com as orientações recebidas, promovi uma reunião para eleger uma comissão de gestão à qual deveria transmitir os meus poderes: o resultado foi de 100% dos votos em mim. Especial mérito meu? É evidente que não: a verdade é que ninguém estava para chatices; dirigir uma escola em regime ditatorial ainda vá... mas em regime de tremenda confusão, como então se estabeleceu, não tem nada de atractivo. No fundo continua a ser assim, desde que não haja obrigatoriedade de aceitação de cargos: uma minoria, a bem ou a mal, vai aguentando e a maioria vai criticando... Durante longos meses, quase um ano, vivi uma situação muito difícil, com o poder exclusivamente concentrado em mim; de facto, nenhum dos meus colegas se dispôs a constituir comigo a comissão de gestão, de acordo com as normas do ministério. Gerou-se assim uma situação um tanto caricata: enquanto reitor, tinha de partilhar com o conselho escolar algumas das minhas competências; após a revolução democrática, o poder era eu! Poder?!... O meu quotidiano, para além da burocracia e das treze horas de aulas que, apesar de reitor/gestor, tinha de dar, limitava-se a "deixar correr" e tentar evitar conflitos de maior. E não eram poucos os conflitos, os pequenos e desgastantes conflitos, sobretudo pela parte do pessoal auxiliar. No entanto o pior conflito resultou de uma calúnia do delegado do ministério público (parece estranho mas é verdade!) em relação à minha actuação (teria querido chamar a PIDE, dias antes do 25 de Abril); os ultras da extrema esquerda tentaram provocar o julgamento popular do reitor; entretanto o autor da calúnia deu o dito por não dito ... e voltou-se à "normalidade".

Assim, passei quase um ano, um ano muito, muito penoso. Entretanto houve o concurso anual para professores efectivos e consegui finalmente colocação no Liceu Nacional de Aveiro, graças a um enorme alargamento de quadros: o grupo de Matemática passou de dois lugares (é verdade: dois lugares!) para dezoito, se bem me recordo. Perante o facto da minha próxima saída do Liceu de Ovar, os outros professores viram-se, finalmente, confrontados com a necessidade de / 38 / eleger uma comissão de gestão.

 

2. Eleição da primeira comissão de gestão no Liceu de Aveiro

Em Outubro de 1975 mudei para o Liceu de Aveiro, agora Escola Secundária de José Estêvão.

O ambiente era de grande instabilidade, de tensão, de profundo abatimento: alguns elementos da primeira comissão de gestão, pelo seu carácter autoritário e dominador, tinham criado uma situação de medo, de conflitualidade e de descrença na democracia que ia ser difícil de sanar: a "caça às bruxas", a divisão entre os "bons" (os que estavam a seu lado) e os "maus" (todos os outros...), o "auto-de-fé" de símbolos do anterior regime, deixaram marcas difíceis de sanar.

Quando iniciei a minha actividade no Liceu de Aveiro, o ambiente estava um tanto melhor: a anterior gestão tinha sido expulsa por acção dos próprios alunos e o poder estava entregue a uma comissão perfeitamente razoável, mas a título transitório. Havia necessidade de promover eleições. Decidiu-se que seria feita uma votação nominal; os dez mais votados comprometer-se-iam a formar cinco listas, agrupando-se como entendessem. Ganhou a lista assim constituída:

José Amadil Lapa (actualmente na Escola Sec. de José Falcão, Coimbra), António Aurélio Fernandes, Manuel Caldeira de Sousa, Maria Dolores (actualmente numa escola secundária da Guarda) e Maria de Lurdes (actualmente numa escola secundária do Porto).

Foi para mim motivo de grande satisfação ter sido escolhido: após ter vivido 44 anos em ditadura e ter sido forçado a "reitorar" um liceu, constituía para mim, aliás verifiquei que também para os meus colegas, um apaixonante desafio a possibilidade de dirigir uma escola em democracia. Foi a única vez na minha vida que entrei num processo de direcção de escolas com alegria! Tínhamos a ilusão de que em democracia tudo correria do melhor modo, todos se entenderiam e cumpririam as suas funções, nada de conflitos.

 

3. Alguns aspectos do primeiro ano de gestão

É curioso explicar por que razão o prof. José Lapa, acabado de chegar de Coimbra, / 39 / praticamente desconhecido, obteve um tão elevado número de votos. Aconteceu que algum tempo antes da votação, o meu amigo Lapa ia proclamando, em jeito de campanha eleitoral, que a primeira medida a tomar, seria restituir a sala dos professores aos professores. Estranho, não é? De facto, uma das decisões mais acintosas e afrontosas da primeira comissão de gestão tinha sido a expulsão dos professores da sala que lhes estava destinada, que passou a ser a sala de Estudos Sociais. Os professores tiveram de se distribuir por três acanhados gabinetes, um em cada andar (a técnica de dividir para reinar...); a reconquista da sala seria assim uma redignificação dos professores. Reunida a primeira R.G.P. [Reunião Geral de Professores] (recordam-se destas saborosas siglas?...), convocada pela nova Comissão de Gestão, foi-se a votos: querem os professores que lhes seja restituída a sua sala? Para além dos votos da nova comissão de gestão, houve três votos (TRÊS) a favor e noventa e tal por cento de... abstenções! Aliás esta tendência maciça para a abstenção caracterizou durante bastante tempo os resultados das votações, reflexo do medo em que ainda se vivia ("não nos comprometam, não vá isto virar outra vez..."). Foi o primeiro grande golpe no nosso entusiasmo. Logo a seguir, um elemento da primeira gestão decidiu queixar-se de nós à direcção-geral, como retaliação por ter perdido a luta da sala, alegando que "não lhe permitíamos realizar um trabalho honesto". Foi o ponto de partida para um longo período de dois anos de um desgastante, por vezes até sujo, processo disciplinar em que a queixosa passou a ré e acabou por ser penalizada.

Do ponto de vista da gestão financeira, não houve qualquer problema, para além do facto habitual de o dinheiro ser sempre escasso... Se bem me recordo, a gestão salazarista manteve-se perfeitamente incólume: ninguém se atreveu a tocar-lhe...

Quanto à legislação de carácter pedagógico e administrativo, claro que houve necessidade de profundas alterações. Teria sido possível fazê-lo com menor dose de confusão?! Talvez não, mas lá que foi complicado, foi... As decisões de carácter pedagógico e administrativo sucediam-se, nem sempre coerentes, nem sempre as mais sensatas. / 40 /

Havia entretanto uma larga margem de decisão dentro da escola. Aliás talvez não fosse tão "larga" como isso, mas tínhamos a ilusão de que muito poderíamos decidir. Para tal sucediam-se, infindavelmente, as RGA e as RGP: discutia-se, discutia-se, uma vez por outra quase se chegava a algum consenso, mas havia sempre algum "desmancha-prazeres" de serviço que se encarregava de baralhar tudo. Não me recordo de que alguma vez se tivesse havido uma reunião com decisões positivas; admito a hipótese de um dia me dedicar à leitura das actas para tentar encontrar, ao menos, uma decisão que tenha sido aprovada e posta em prática. Claro que uma coisa importante se aproveitou: a aprendizagem da democracia. Todos estão ainda bem recordados que o ano de 1975 foi um ano particularmente quente, dramaticamente quente, de luta política e, como é evidente, essa luta teria de se reflectir no ambiente das escolas, algumas vezes com certa dureza, em geral com muito "folclore"...

Problemas com alunos? Não me recordo de nada de especial. Tinha havido de facto, em 1974, com o objectivo de substituir a primeira Gestão. Mas depois da nossa tomada de posse, não houve nada a assinalar. O principal problema que pessoalmente vivi, resultou de ter sido o membro da Comissão de Gestão encarregado de coordenar as actividades do Serviço Cívico; tentei que os alunos se dedicassem a algumas das várias tarefas que lhes tinham sido propostas, mas não se viu nada, absolutamente nada. No fundo, até se compreende: "já que não me deixaram entrar para a universidade, então vou aproveitar para gozar a vida..."

Problemas com professores? Aí sim, embora casos pontuais. Pessoas que tinham sido sempre respeitadoras do poder, tornaram-se exigentes, rebeldes, desrespeitadoras das determinações superiores, mesmo que correctas. Por outro lado, a acentuada clivagem política criava tensões que perturbavam o bom relacionamento: de um lado o grupo pró-PC, do outro todo o resto do corpo docente.

Estabeleceram-se as primeiras comissões de pais que, se pouco contribuíram para a melhor gestão da escola, pelo menos não perturbaram. / 41 /

 

4. Segunda Comissão de Gestão.

O mandato da primeira Comissão de Gestão terminou no final do ano lectivo 75/76. Houve necessidade de proceder a novas eleições, agora com orientações vindas do ministério, com a intenção de criar uma uniformização. Pela primeira vez se formou uma lista, sem votação prévia: mantiveram-se os três primeiros elementos atrás citados; as duas senhoras, por já não estarem na escola, foram substituídas pela prof.ª M.ª Otília Osório e pelo prof. Nelson Mota.

Nos dois anos que se seguiram começou a desenvolver-se uma estabilidade ainda muito precária, mas que ia criando alguma normalidade. A democracia estava a começar a sua consolidação.

Tive ainda oportunidade de participar, durante dois anos, numa outra comissão directiva, aliás já designada por conselho directivo. Era presidente o prof. Arsélio Martins. Já que ele está presente, deixo-lhe o encargo de falar sobre esse período.