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4ª Série - Número 3 - Dezembro de 2000 - pp. 26-34

 

António José Pires Esteves Remédios

 

Bom, não sei por onde hei-de começar mas, pelos vistos, já de manhã se fizeram algumas referências a várias situações ligadas à Escola onde eu trabalhei. Nessa altura, em Janeiro de 1975, quando eu cheguei aqui, fui colocado na Escola Secundária José Estêvão, embora eu já tivesse sido professor, já me tinha ligado à carreira docente, mas é ali que começa o meu primeiro contacto com os problemas da gestão e com os órgãos de gestão e vou cair na José Estêvão, onde andava a fervilhar um forte reboliço, na altura em que eu ainda não tinha muitos conhecimentos, nem pormenorizados, nem aprofundados, porque nem sequer era de Aveiro; portanto, tinha muito poucas referências. Apareço completamente descontextualizado e, no fundo, acabámos, eu e outros grupos de professores, por ser envolvidos na tentativa de ultrapassar algumas perturbações, não só entre grupos de professores, mas também entre professores e alunos, tanto quanto eu me lembro.

Mas isto tem, no fundo, uma forte raiz no contexto social da época. Uma das coisas curiosas das Escolas da época é que, "avant Ia lettre", estavam fortemente integradas na comunidade, numa outra perspectiva, mas eram verdadeiros passadores, completamente permeáveis aos problemas que havia no contexto social e político e cultural da época; por isso as Escolas nesse aspecto estavam completamente abertas e as influências eram permanentes e totais do contexto externo, das movimentações políticas, culturais e sociais que influenciavam não só os professores, mas influenciavam também os alunos. E eu creio que uma grande particularidade que surgiu na altura, foi a de os alunos terem a possibilidade de se manifestarem colectivamente em relação a algumas decisões dos próprios órgãos de gestão, assim um pouco impulsivamente, talvez até um pouco anarquicamente, mas com uma forte pressão colectiva, que nos punha a todos a pensar na maneira de ultrapassar aquilo.

Há aqui uma pista no texto que foi enviado que eu acho interessante, em que se pergunta qual é o curriculum, qual era a preparação prévia que um individuo tinha para poder ir para este tipo de funções. Nenhuma. Tanto quanto eu sei não havia preparação nenhuma. Os meus únicos dois dados curriculares, e que me serviram / 27 / provavelmente de referência, foi o facto de ter sido dirigente estudantil, nas lutas académicas, em Coimbra, e o facto de ter pertencido às Comissões do MFA, e, como tinha acabado de sair da Tropa, vinha também com fortes conotações com o MFA vigente e dominante no país. Há aqui uma componente político-militar que é importante; isto é tanto mais interessante quanto aquilo que a mim pessoalmente me levou a envolver-me nos problemas de solução de gestão daquela escola foi o momento em que nós vimos entrar dentro da Escola um Pelotão Militar armado de G3 e que tinha sentinelas em cada esquina de cada corredor; aliás, um oficial que lá estava, que é de cá de Aveiro, tinha sido meu colega em Coimbra na altura da greve e estava ali de G3. Contra quem? Foi uma forte situação escandalosa, que fez reagir todas as pessoas e fez nitidamente retirar toda a base de apoio a uma Comissão de Gestão que existia na altura na José Estêvão e que não tinha qualquer possibilidade de ultrapassar aqueles problemas de uma maneira saudável. Portanto, fizemos uma primeira reunião com as autoridades militares, creio mesmo que na própria sala do Conselho de Gestão; e é portanto a partir daí que há uma espécie de uma demissão; vem um Delegado do MEC e um professor de Lisboa tentar mediar a situação e tentar arranjar alguns mecanismos formais de novas eleições, de novas propostas de nomes, de ultrapassagem da situação; os alunos, entretanto, tinham também feito uma greve e uma ocupação da Escola durante uma noite ou duas, creio eu, e há ali uma forte perturbação. E esta situação só ficou resolvida no dia 11 de Março. Exactamente, por coincidência, no 11 de Março, que foi quando esse Delegado do Ministério da Educação resolveu ir para Lisboa com o problema mais ou menos solucionado; nós até já tínhamos feito uma eleição, num Plenário de Professores; creio que a eleição já estava feita, os alunos também já tinham parado o seu bloqueio das aulas, portanto o campo estava aberto para podermos reiniciar.

Como explicar a greve dos alunos? Provavelmente devia haver ali um acumular de tensões anteriores; uma Comissão Administrativa que tinha sido eleita logo a seguir ao 25 de Abril, tanto quanto eu me apercebi. Aquelas eleições também eram demasiado espontâneas e directas para se poder distinguir o que é que era uma nomeação e o que é que era uma eleição, mas, tanto quanto eu me lembro, / 28 / eu nunca falei disto com ninguém, aliás até seria interessante nós, os próprios elementos desse Conselho de Gestão, fazermos uma espécie de feed-back, à distância, e ver afinal o que é que nós fizemos e como é que nós nos comportámos. É a primeira vez que estamos a falar em público, a não ser uma vez que nos encontrámos, ali com o Dr. Aurélio também, mas era com alunos, e foi mais anedótico do que assim estruturado... Mas seria interessante fazer um feed-back deste género, mais participado, para vermos os vários pontos de vista.

Tanto quanto me lembro, o que aconteceu foi que essa situação dos alunos, ou essa luta dos alunos, que era fortemente politizada também, muito influenciada pelas correntes também politizadas dos alunos, pelo menos o MRPP estava nitidamente presente e na José Estêvão o MRPP tinha muita força, mais que a própria UEC nas RGA's; depois havia os grupos de um outro tipo de esquerda, mais o MES, a LUAR; mas os dois grandes pólos da actividade dos alunos eram a UEC e o MRPP. O movimento que eles quiseram não foi o único em Aveiro, creio que houve em simultâneo noutras Escolas do País e creio que foi desencadeado um pouco por um problema de notas: qual seria a nota que era necessário para dispensar de exame, ou para dispensar da oral, já não me lembro; há ali qualquer coisa ligada com a possibilidade de passagem administrativa e eles reclamaram.

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Fernando Lacerda interrompe:

Em 1975 situava-me eu no contra-ponto, no outro lado da barricada relativamente ao poder na gestão, como aluno duma escola do interior, em Bragança, e a terminar o 7.º ano do Liceu.

Por essa altura, uma das organizações políticas mais activas era de facto o MRPP, sempre em grande choque com todas as outras, nomeadamente com a força política que pretendia de certo modo impedir de se instalar, que era a UEC. E a luta entre as organizações políticas tinha, digamos, como motivo de base esta guerrilha que se fazia entre as organizações estudantis.

Aquilo que motiva os alunos, e nós em Bragança fizemos 15 dias de greve às aulas, são várias peripécias possíveis de colocar em R.G.A. de forma a dar consistência / 29 / a esta mesma guerra que se pretendia fazer no boicote fosse ao que fosse e na criação de alguma movimentação dentro das Escolas, mas essencialmente com uma componente política bastante submergente, ou seja, estaria submersa essa ideia através das organizações políticas, nomeadamente do MRPP.

Em Bragança o motivo concreto foi um tal Dr. Subtil, que terá dado uma nota com a qual se discordava, mas como foi esse motivo podia ter sido outro qualquer. Provavelmente, este tipo de situações seria comum e era uma realização que não era pontual, seria um período sensivelmente idêntico àquele que se vivia aqui em Aveiro e provavelmente situar-se-á dentro do mesmo âmbito de actuação, que são as organizações políticas ao nível dos estudantes que, por qualquer motivo, seja ele qual for, procuram ampliar, dando-lhe corpo e transformando-o em campo de batalha real de forma a pôr em causa a estabilidade.  ………………………

[RGA = Reunião Geral de Alunos]

 

Esse contexto político era visível em Aveiro também, mas eu tinha ideia que teria havido uma medida administrativa concreta que tivesse provocado... ou as faltas, ou a regulamentação das faltas; talvez, uma dessas medidas que faz efervescer os alunos em pouca água.

Mas o mais grave, e eu nesse aspecto estou completamente de acordo com a atitude que tomámos nessa época, foi o Conselho de Gestão ter chamado os Militares para dentro da escola, isso é que foi, pelo menos na José Estêvão, tanto quanto eu me lembro, aquilo que fez explodir o barril e que levou todos os professores a isolarem a Comissão de Gestão da época, porque não fazia sentido, era uma medida que não tinha lógica, que subvertia todas as relações entre corpos docentes e discentes dentro de uma Escola, que subvertia toda a actividade pedagógica de aprendizagem, não tem nada a ver, não se estava em situação de guerra, nem o MFA estava ali a ocupar o que quer que seja, nem os objectivos políticos da presença do MFA eram claros, não estavam lá só para mostrar as armas; portanto, isto transformava toda a relação possível das pessoas dentro de uma instituição escolar que é uma relação quase militarizada, de violência permanente ou de violência institucionalizada. Portanto, isto é que creio que levou / 30 / todos os professores, colectivamente, no fundo, a quererem que se demitisse a Comissão de Gestão da altura, que já não me lembro se foi demitida ou se foi levada a demitir-se. Há, no entanto, um processo curioso de eleição que nós propusemos que foi o de fazermos uma eleição nominal, em Assembleia Geral de Professores; isso significa que não foi feito nenhum grupo prévio, não foi combinado nenhum programa entre nós, no fundo acabaram por pertencer a essa Comissão de Gestão os indivíduos mais votados na Assembleia Geral de Professores, por eleição nominal, o que significava que era um grupo heterogéneo de professores; dele faziam parte a Dr. Teresa Caldeira, que era a senhora mais "vetusta" da Escola e que já tinha experiência, o Énio Semedo, a Fernanda Neves, que fazia parte da secção cá de baixo (a actual Homem Cristo, a antiga secção feminina, mas ainda era uma secção da José Estêvão); um outro colega, de que não me lembro o nome agora, e a Teresa Nifo também fazia parte desse grupo; portanto, eram pessoas diferentes que pelo seu próprio percurso no exterior têm perspectivas diferentes da Escola e de outro tipo de actuações, mas que fizeram um trabalho em equipa que era inevitável ser feito em conjunto, e foi isso que nós propusemos um pouco a prazo, porque nós pusemos alguns limites, que aguentaríamos até ao próximo ano lectivo para quando viesse a nova regulamentação das Comissões de Gestão podermos passar a pasta; o certo é que penso que tivemos que aguentar tudo até Janeiro, altura em que entra depois a Comissão já eleita noutros moldes, em equipa, de que faz parte o Dr. Aurélio e o Lapa, etc.

Há aqui várias transições que são interessantes. Mas estes são os dois momentos de que mais me recordo.

A participação dos alunos, tanto na luta como depois na aceitação da nova proposta. Tanto quanto me lembro, os professores eleitos foram comunicados aos alunos e eles tiveram oportunidade de se manifestar, ou pelo menos tiveram conhecimento de quem tinham sido os professores eleitos, de qual tinha sido a solução da Assembleia Geral de Professores.

Esta participação dos alunos é importante, esta diversidade da participação dos professores também é interessante e é importante nessa fase, o que corresponde, na minha perspectiva, a uma certa despolitização viável da Gestão Escolar, teve / 31 / um certo interesse, porque uma vez que eram professores de várias formações permitiu descomprimir um pouco as tensões políticas e ideológicas que estavam presentes na Escola, isso creio que até foi benéfico em termos transitivos para as Gestões seguintes.

Agora, não tenho uma ideia muito clara de como a Escola continuaria a funcionar para além destas lutas político-ideológicas ou culturais da época, como é que funcionaria em termos pedagógicos. Não tenho uma ideia muito clara. As coisas continuavam a funcionar na mesma. Eu aí estava um pouco afastado, era mais a Dr.ª Teresa Caldeira que acompanhava mais a área das questões administrativas, de execução, de exames, não tenho uma ideia muito clara, sei que aquilo funcionava sempre e que nós abríamos sempre no tempo que estava previsto, fazíamos os exames; portanto a Escola não parava por isso, mantinha-se pelo menos um funcionamento formal da Instituição, e não houve propriamente faltas nem houve interrupções.

Em termos pessoais, teve uma consequência na carreira, é que se eu não tivesse vindo para a gestão provavelmente não teria ficado na carreira docente, porque como estava em transição, tinha acabado o serviço militar e como tinha feito o estágio na Psicologia e por isso estava hesitante entre optar pela carreira docente ou enveredar pela especialização e pela profissionalização na Psicologia. O facto de ter entrado para a Gestão agarrou-me muito à Escola, porque, entretanto logo a seguir fiz estágio; fui membro do Conselho de Gestão ao mesmo tempo que era estagiário; nos primeiros três meses era estagiário simultaneamente, o que deve ser também uma coisa inédita; durante três meses fui ao mesmo tempo estagiário e Presidente do Conselho de Gestão, não sei se era Presidente, isso já não me lembro. Mas este efeito pessoal para mim é visível, se não tivesse ficado na Gestão e consequentemente não me tivesse integrado na própria Instituição Escolar através da realização do estágio teria provavelmente mudado de carreira e não teria ficado na carreira docente; portanto é um dos efeitos, perverso ou não, que o facto de ter passado pela gestão teve no meu percurso pessoal.

De resto não me ocorre nada de especial neste momento. Pode ser que depois, durante a conversa, me lembre de mais alguma coisa; são coisas que fazem parte / 32 / um pouco das memórias pré-históricas e que nunca foram propriamente partilhadas colectivamente, nem em termos grupais.

Lembro-me sobretudo de uma forte ligação ao Ministério da Educação, que nessa altura era mais centralista do que é agora; e em relação ao qual nós tínhamos sempre uma forte dose de dependência inevitável. E lembro-me, por exemplo, de uma grande divisão entre o funcionamento do Conselho Directivo e os Serviços Administrativos; nos Serviços Administrativos nada tinha mudado, para eles tudo continuava a funcionar pela legislação antiga e pelos mesmos regulamentos, e havia um corte muito nítido entre o funcionamento pedagógico ou institucional da Escola e as regras administrativas, os funcionários administrativos que tinham a sua lógica própria, sem grandes pontos de ligação, a não ser em termos pessoais, com o velho amigo, Sr. Lança Pereira, com quem nós íamos sempre partilhando alguma coisa; mas ele tinha o cuidado de quando as decisões do Conselho de Gestão não estavam de acordo com os Regulamentos, lembro-me perfeitamente, pelo menos numa Acta ou duas, de ele dizer que não votava connosco e deixava expresso em Acta que não era essa a sua opinião.

E nós dependíamos muito do Ministério da Educação. Estou a lembrar-me de um incidente, acho que o único incidente, aqui podemos falar nisso, que teve talvez uma situação mais crítica na José Estêvão; foi uma tentativa de saneamento de um colega, de um professor, que já desapareceu, já não está entre nós; creio que foi o único, pelo menos em que eu participasse, o único processo especificamente para saneamento, porque havia uma directriz do Ministério a dizer que os saneamentos só podiam ser feitos por razões pedagógicas; ele tinha a sua opção e a sua opinião própria, diferente dos outros professores, dos órgãos de gestão, e portanto fazia a sua vida e dava as suas aulas e divulgava as suas opiniões como quisesse, mas houve, creio que uma tentativa de, através de uma turma dele, dar fundamento pedagógico a um saneamento, nomeadamente em termos de métodos; houve uma turma que fez um grande depoimento colectivo, e assinado por todos, sobre as suas práticas pedagógicas mais ou menos criticáveis; e foi esse o único fundamento que pôde ser utilizado para essa tentativa; depois o Ministério obrigou-me a ouvi-lo em Auto, mas eu creio que aquilo depois não deu em nada, foi tudo arquivado, / 33 / portanto, não evoluiu nem teve consequências mais graves. Foi o único incidente ou a única consequência directa, em termos pessoais, das lutas político-ideológicas dentro da Escola, que eu me lembre. Tudo o resto que existiu, estava controlado, se quiserem, estava dentro do parâmetro de convivência e de comunicação interpessoal; nessa situação atingimos quase o limite, e que eu me lembre foi a única situação limite mais chocante desse momento, pelo menos naquela Escola.

Outra coisa de que me lembro, a permeabilidade às lutas político-ideológicas da época era tanta da parte da instituição escolar que lembro-me perfeitamente de um incidente com uma certa gravidade, que aconteceu no dia 11 de Novembro; foi na altura da independência de Angola em que houve um grupo da UEC que, sem dizer nada à Comissão de Gestão, resolveu içar a bandeira do MPLA juntamente com a bandeira portuguesa nos mastros da Escola, eu estava em aula, isso deve ter sido logo de manhã, oito e meia, nove e meia, não me lembro. É evidente que isto provocou imediatamente o grupo dos MRPP que resolveram ir lá retirar a bandeira e andar de sala em sala a chamar o "pessoal" para vir fazer ali luta pública em frente; foram bater à minha porta, eu estava em aula e não me tinha apercebido de nada, nessa altura havia alguns que estavam a tentar sair pela janela, outros pela porta, portanto tivemos mesmo que parar a Escola, eu contactei com um rapaz da UEC; eles ainda chegaram a chamar a GNR, mas eu creio que não chegou a aparecer, porque entretanto conseguimos que eles retirassem a bandeira ainda durante a manhã, mas houve ali um "sururu" razoável e que nos pôs em sobressalto. Isto é uma das coisas curiosas de que eu me lembro, sobretudo com a incidência do MRPP e as lutas políticas juvenis, mais juvenis do que de professores. Agora nós queixamo-nos que os alunos não têm qualquer politização e não seguem ideologias... Nessa época não nos podíamos queixar disso, quando muito podíamo-nos queixar do excesso de ideologia e do excesso de politização...

Gostava só de fazer ainda uma referência em relação ao MRPP, que é uma maneira curiosa das Escolas colaboraram entre si. Lembro-me perfeitamente de que na nossa Escola, a partir de determinada altura, conseguimos definir uma zona, já não me lembro onde era, se era uma parede, se era um painel, onde eles podiam afixar a sua propaganda; conseguimos delimitar algum espaço, algum rectângulo qualquer / 34 / de uma parede... Mas lembro-me perfeitamente da Dr.ª Cecília Sacramento, que estava nessa altura na Comissão de Gestão da n.º 1, me telefonar para lá porque tinha o MRPP dentro da sala da gestão a querer afixar papéis em qualquer parte e ela estava exactamente a apontar-lhes o exemplo da nossa Escola.

Não sei se alguém mais quer fazer a sequência.