A Beira
Litoral, servida por abundantes meios de comunicação e englobando no seu
perímetro terras altas, terras de planície, e terras do litoral (de Ria
e de Mar), não pode apresentar homogeneidade no vestuário nem aspirar à
manutenção de hábitos e usanças que o tempo e as modas
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vão desgastando, e que só as regiões fechadas a influências do exterior
e ao natural intercâmbio conseguem conservar. No entanto, pela
subordinação indispensável ao meio geográfico e pela força da tradição,
algumas peculiaridades indumentais se verificam ainda num ponto ou
outro.
Já hoje
não é possível encontrar a uso duas peças fundamentais do vestuário
popular feminino de outro tempo nas terras que vieram a constituir a
Beira Litoral: o gracioso colete exterior que a mulher de toda a
província envergava, diversamente colorido, sobre a camisa de mangas com
punho rendado e gola de folhos, modelando-lhe o busto gentil e apertando
com grandes botões de prata, nem a mantilha de camelão ou de
baeta, preta ou cor de pinhão, debruada a fita larga de veludo, que lhe
caía dos ombros com inexcedível distinção e garbo, contrastando com o
lenço de bobinete, engomado, de impecável alvura. O tipo da saia vai
também evolucionando muito, mas ainda se vêem as fartas saias rodadas,
com três idas de fitilho em baixo, e que uma faixa ou um simples
alteador repuxam para a cintura quando o trabalho ou a caminhada
exigem maior liberdade de movimentos.
Se passarmos rápida revista ao que resta ainda de
característico no vestuário feminino popular da Província,
encontraremos, na zona serrana, a capucha de burel, quase sempre
de cor castanha, excepcionalmente preta, e, também, no extremo sueste, e
um pouco na Lousã, branca; é a sobrevivência do cucullus romano,
que se não perdeu de todo em país tão dominado pela civilização do
Lácio; lançada pela cabeça, descendo até meio corpo, a capucha é
vestuário extremamente utilitário, imposto pelas agruras do clima e
obtido à custa da indústria local de fiação de lãs. Nessa zona serrana,
todo o vestuário da mulher é mais grosseiro, acomodado ao meio
geográfico e às disponibilidades industriais que lhe andam inerentes. O
homem usa muito jaqueta curta de burel, saragoça,
ou de veludilho, calça justa à perna, calçado grosso, chapéu de
feltro de boas abas ou carapuça de lã que deixa tombar para o lado;
completa a sua indumentária com um capote, e não larga o varapau, para
onde quer que vá. Este vestuário acompanha o nativo até mesmo à estrada
Porto-Lisboa, nomeadamente para o Sul, a partir de Pombal. No Inverno é
vulgar
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ainda o uso de safões de pele de ovelha, a resguardar as pernas;
os pastores enfiam pela cabeça o chamado cobertor de racha, que
deixam cair a um lado e outro do corpo, em plena liberdade.
Se
passarmos à zona central, veremos que o vestuário da mulher se
banalizou muito; o do homem também; para aquela, importa apenas notar a
saia emprègada da camponesa dos arredores de Coimbra, muito
tradicional, resistindo à acção niveladora da cidade, e o trajo da
mulher das cercanias de Leiria, que é blusa muito justa ao corpo,
apertado em colete interior, cinta alta, saia frequentemente de
serguilha (mas também de vário outro pano) muito rodada, sapato de
presilha, de cabedal, quase sempre da cor natural da carneira, e
canos de lã nas pernas, mesmo de Verão, e quando vai descalça, o que
frequentemente acontece, sai à rua em corpo, levando pendurada no braço
uma saia grossa que, sendo necessário, dobra ao meio e lança pelos
ombros; quando leva xaile, é também no braço que o dependura,
cuidadosamente; na cabeça, lenço ordinariamente soqueixado, e chapelinho
preto de feltro e veludo, de copa alta e abas cingidas a ela, enfeitado
com fitas de veludo, penas de ave e uma fivela niquelada.
Nas
terras baixas da costa, rasantes com a água, a mulher ganha grande
desembaraço de maneiras e aligeira muito o seu vestuário. O que mais aí
impressiona é a policromia, por vezes dissonante, das peças que compõem
o vestuário da gandareza ou da gafanhoa.
«Uma
blusa verde-mar, por exemplo, tem a acompanhá-la, muitas vezes, saia
azul, avental cor-de-rosa, lenço encarnado e preto, ou outra dissociação
cromática idêntica, que fere a retina e fica incompreensível ao
equilíbrio estético a que estamos habituados; com saia vermelho
carregado vê-se frequentemente blusa branca, lenço verde de ramagens e
avental azul claro… É estranho, à primeira vista; mas onde tudo aquilo
se valoriza e transforma, pela fusão de cores que então se opera, é nos
bailes que se armam sobre as proas dos barcos moliceiros onde o pessoal
fez a viagem; num pequeno espaço – quatro escassos metros quadrados, nem
tanto, talvez – volteiam cinco, às vezes seis pares, dançando a
Farrapeira, a Chula, o Folgadinho, o Vira, o
Malhão, a Caninha Verde. É vê-las, então, vibrando, ao ritmo
do harmónio, da viola e dos indispensáveis ferrinhos, faixas e pontas de
lenços ao vento:
Costa Nova nada vale,
Aveiro vale um vintém,
Ílhavo vale um cruzado
P'las lindas moças que tem.
Alegria comunicativa, que logo se transmite ao areal onde
o moliceiro abicou, aí se formando nova roda a cada momento
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engrossada por outros pares que não resistem ao apelo ancestral, e que
ocorrem, de longe, em marcha, comandados pela viola de arame, martelando
a Ribaldeira, cadência marcada pelo tambor e pelo estralejante
bater das mãos de todo o rancho». (Alguns aspectos do trajo popular
na Beira Litoral, do Autor, pág. 121-128).
Outro
elemento pitoresco, extremamente interessante, a considerar, nesta
província, no vestuário da população das terras próximas do mar, é a
variedade, graciosíssima, de chapéus que se observa desde as gândaras de
Leiria até Ovar e S. João da Madeira, (fabricados nesta última) e o
xaile, que, traçado de diversíssimas formas, assume em Aveiro
proporções decorativas de raro encanto, mais como complemento estético
do que real agasalho.
Vão
rareando a meia branca e a chinelinha inconcebível da tricana de Aveiro,
que veste agora meia de seda e sapato fino, tal como a senhora, de que
só o xaile a diferencia; mas surgem por vezes ainda, em toda a sua
aliciante evocação doutros tempos, para regalo incomparável dos olhos,
como complemento vaporoso da própria paisagem de aguarela que a ria e a
cidade são.
A galinheira de Estarreja, a peixeira da Murtosa e de
Ovar, pela elegância e maravilhoso equilíbrio do seu corpo, e pela
graciosidade do chapelinho que quase só tem aba e serve de base à
minúscula rodilha onde pousa a macola ou a cesta da
criação, dominam inteiramente o panorama do trajo feminino nas
terras baixas da província.
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O homem
do litoral, esquecido grandemente do elegante gabão de burel
ou de surrobeco, de longínquas e honrosas tradições, só no
vestuário sumaríssimo do marnoto ou do mercantel apresenta
originalidade, com suas manaias curtas, pela coxa, muito brancas,
barrete ou chapéu desabado, assim trabalhando nas marinhas ou correndo
na borda das bateiras mercantéis, desde a Costa Nova ou S. Jacinto até
ao cais da cidade, vergado sobre a vara que impele a elegante barquinha.
E não é
justo esquecer que desta região irradiou para a Capital a varina
que ainda hoje mantém carácter, com inegável galhardia, dá cor e vida a
Lisboa, e ajudou generosamente Portugal, mercê do seu perfil invulgar, a
fixar-se nos álbuns dos turistas estrangeiros; foi gente de Ílhavo,
primeiro; depois, de Ovar, Murtosa, Estarreja; apesar dos cruzamentos
naquela cidade, conserva-se, por índole e por virtude da indumentária,
inteiramente fiel à província donde remotamente partiu.
________________________________________
(1)
– Por António Gomes da Rocha Madahil,
Alguns aspectos do trajo popular na Beira Litoral,
págs. 121-128.
NOTA –
Nesta versão foi suprimido o mapa do distrito de Coimbra, colocado entre
as págs. 64 e 65.
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