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II. BEIRA LITORAL

Caracteres da província e do habitante. A paisagem (1)

 

A menos beiroa, como se diz, das três Beiras. Cingida a poente pelo Atlântico, a cujas águas oferece, desde a foz do Lis a Espinho, um extenso regaço de indefinidos areais apenas interrompido pela brusca proeminência calcária da serra da Boa Viagem, delimitada a norte pela divisória hidrográfica que reparte os afluentes terminais da margem esquerda do Douro e direita do Vouga, a nascente pelas vertentes do maciço da Gralheira (ramificações da Freita e Arestal), pendores das serras de Talhadas do Caramulo, Buçaco e a profunda abertura meândrica do Alva até às alturas de Açor, a sueste pela serra da Lousã, por um segmento do Zêzere e o maciço do Porto de Mós – a Beira Litoral é uma província de / 56 / formação recente constituída em grande parte pelo bloco meridional da extinta (2) Província do Douro e por uma parcela retirada ao prolongamento setentrional da Estremadura. Sendo uma circunscrição nova da Beira, resultante embora da verificação relativamente palpável da comunidade de diversas características etnográficas, carece (por agora, pelo menos) de / 57 / consciência provincial popular. O habitante de cada uma das suas sub-regiões (Lis, Mondego Litoral, Gândara, Bairrada, Ria de Aveiro, Terras de Ovar e de Cambra, Ribeira do Vouga, Entre Lousã-e-Alva) identifica-se, geralmente, salvo o desta última, como natural de cada uma dessas redondezas e não, de modo genérico, como beirão.

Entretanto é incontestável que, pelo seu clima, solo, vegetação e relevo é uma região bem demarcada, e precisamente em relação às duas divisões confinantes da Beira. Com efeito, enquanto estas assentam sobre a plataforma arcaica e granítica da Meseta, a Beira Litoral é essencialmente uma mancha irregular da chamada orla ceno-mesozóica, constituída fundamentalmente de terrenos sedimentares. Quanto ao relevo, a carta hipsométrica acusa esta característica patente: a sua inferior altitude média, verificando-se que a sua linha de delimitação, correlativa das duas Beiras montanhosas, acompanha aproximadamente a curva de nível de duzentos metros.

Ao longo de toda esta província, a vegetação é abundante; junto da costa, sublinhando as ondulações brancas das dunas e opondo-se ao seu avanço, são as extensas matas de pinheiros marítimos, do Urso, de Lavos, Quiaios, Mira, S. Jacinto e Ovar (em boa parte pertencentes aos serviços florestais do Estado); dentro, na larga faixa que fica situada entre a orla costeira e os pendores serranos, são os prados e as várzeas húmidas, com os renques de choupos e salgueiros a escoltar os cursos de água, num sítio ou outro, alagadiço, uma superfície macia de arrozal, nos declives soalheiros, os olivais e vinhedos, os pomares e as casas brancas, aqui e além, os maciços de árvores de grande porte de que o Buçaco é o exemplar mais ornamental. A humidade da atmosfera e a temperatura relativamente branda, de influência atlântica, contribuem conjuntamente com a água do solo, existente em abundância em camadas de pequena profundidade, para esse verdejante revestimento. O lavrador nativo não tem de recorrer ao que é de usual necessidade nas regiões graníticas do interior, à pesquisa trabalhosa das veias de água, escavando, pelos montes dentro, longas galerias, (minas), a picareta e pólvora: abre simplesmente um poço na capa de argila ou húmus do seu campo e logo depara com um manancial pronto a receber os alcatruzes da nora ou o balde / 58 / da cegonha (3). Num solo desta natureza, cheio de recantos sossegados e, em grande percentagem, úbere, a população torna-se naturalmente densa. Aldeias e vilas há nesta província, como são, por exemplo, na sub-região da Ria, Pardilhó e Ílhavo, que ultrapassam em número de habitantes algumas das cidades antigas, planálticas, da Beira e Trás-os-Montes. Daí a imposição da emigração. Por temperamento acomodado e calmo, mas, por compensação, portador de discretas aptidões de despegamento, o beirão do litoral, nomeadamente o da Bairrada e periferia da ria, embarca com frequência para o Brasil ou Estados Unidos da América do Norte, e nesses meios, tão estranhos, adapta-se com rara plasticidade às formas de viver e trabalhar. Aliás, dentro do seu próprio meio natal, as suas capacidades de iniciativa se traduzem de mil modos, vendo-se por toda a província laboriosas empresas de pesca, conservas, sal, vidros, papel, feltros, carvão, cimentos, cal, cerâmica, metalurgia, lanifícios, curtumes, serrações, lacticínios, galatite, resinagem, massas alimentares, vinhos espumosos, estaleiros, cordoaria, etc. E, enfim, uma das províncias portuguesas mais industriosas. As variadas virtualidades do solo e as condições favoráveis derivadas da sua posição central não são, é evidente, alheias a esta profusão de actividades. Além de servida por uma excelente rede de estradas, a Beira Litoral é beneficiada em todo o seu comprimento pela circulação intensa da principal linha férrea portuguesa (com / 59 / dois ramais) e fomentada por três vias secundárias; possui, sobre outras de menor nomeada, duas afamadas fontes de águas medicinais (Luso e Curia); contém uma floresta de vilegiatura de grande renome (Buçaco); uma das praias mais concorridas, senão a mais concorrida do País (Figueira da Foz); uma das cidades cenograficamente mais belas e mais características, entre as peninsulares (Coimbra); um dos monumentos góticos mais notáveis da Europa (o Mosteiro da Batalha); ruínas de um paço real comparáveis em beleza de posição e fisionomia aos castelos da Flandres e do Reno (os Paços de Leiria); uma pequena cidade anfíbia e branca, encantadora (Aveiro); uma vasta formação lagunar, fluvial e marítima, como campo ideal de pesca ou de absorção contemplativa (a Ria); indefinidos recessos de bosques, cobrindo de sombra os quase vencidos medos do litoral; fundos rurais e pendores arborizados de montanhas convidativos à realização de campismo; e, como último oferecimento aos processos mais céleres de viajar, cinco campos de aviação (Leiria, Figueira da Foz, Coimbra, S. Jacinto e Esmoriz-Espinho), três deles mistos, com pista e toalha de água, pouco apetrechados e concorridos por enquanto, mas forçosamente, no futuro, convertíveis em apreciáveis núcleos de valorização da província.

Em contraposição, há duas sombras no seu porvir que só grandes trabalhos de técnica hidráulica poderão reduzir; uma, a ameaça de assoreamento da planície fecunda, terminal do Mondego, proveniente das calamitosas cheias; outra, o alteamento perceptível do fundo da ria de Aveiro, denunciador da sua tendência para deformação e desaparecimento, em parte em consequência dos depósitos carreados pelo Vouga. São duas valiosas regiões em risco, a longo prazo. Se o trabalho funesto dos dois rios não pudesse ser combatido com obras cientificamente dirigidas de / 60 / regularização e compensação, o decrescimento do valor económico dessas zonas produtivas implicaria a ruína dos núcleos demográficos que neles se concentram. Por esse aspecto, a Beira Litoral é, a par do Ribatejo, uma região particularmente propícia a pôr à prova o que a ciência, aliada à técnica, poderá fazer como corrigenda das discretas expressões hidrográficas de acréscimo de entropia.

A paisagem é, nesta província, sensivelmente vária. Concorrem para a multiplicidade de aspectos tanto os seus acidentes do relevo como as diferenças de elementos de arborização tão evidentes no seu desfile. A oliveira, por exemplo, abundante no sul, só esporadicamente se encontra nas zonas agrícolas do norte. Os contrastes entre algumas sub-regiões contíguas são por vezes flagrantes. Não é sem surpresa que se passa das cercanias pobres e triviais de Souselas e Pampilhosa para as espessuras sagradas do Buçaco – essa Meca dos viajantes de mais exigente sensibilidade, ou das margens do Mondego, de Bencanta a Montemor, com as suas alcatifas macias de arrozais e retalhos de trevo, seus demorados poentes sanguíneos, seus elegíacos cortejos de choupos, para as asperezas dos alcantis do mesmo rio no caminho de Penacova. Deparar com um cenário violento e lúgubre, caracterizadamente pirenaico, do género da queda da Frecha de Misarela, depois de se percorrer as várzeas relativamente próximas, banhadas de mansidão, do Vouga inferior, é sentir por instantes a suspeição de se ter feito um trânsito de sonho.

Contudo, no seu conjunto, pelo seu perfil geral de encosta, exposta à acção humedecente do Atlântico, é uma província com uma fisionomia unida que ressalta aos olhos de quem a observa da linha do litoral, de algum bom miradouro, como é, entre os / 61 /  melhores, o farol da Costa Nova [Barra]. Daí se apreendem e contemplam com largueza os seus traços essenciais: ao longe, o biombo verde-bronze das montanhas tombando (por ilusão de distância) em macios declives; a meio-fundo, a sucessão de colinas arborizadas, vindo, como ondas, cada vez mais volumosas e nítidas, até se suspenderem junto da linha rasa das aluviões; em volta, os mil caminhos das águas, as salinas, os nateiros, as manchas brancas das povoações e o intérmino areal dirigindo-se para o sul e para o norte, como uma larga pista de palha aloirada, acompanhada de um lado pela muralha indefinida dos pinhais e do outro pelo dorso musculoso e azul do oceano. Se o dia é tranquilo e solar, a contemplação desta amplidão, variada e simples, embevece. Sente-se na luz que a envolve a tonalidade alcalina e diáfana da melhor luz atlântica. Poderíamos mesmo dizer (se em definições de paisagens todo o recurso insistente à comparação não fosse uma espécie imaginativa de círculo vicioso) que nestas belas aguarelas da Beira Litoral há, esparsos, muitos elementos da beleza do Algarve. Mas tal analogia pouco diria. Cada região tem as suas belezas e fealdades próprias. Evitando, de resto, acentuar excessivamente a nota «edénica», importa reconhecer que a paisagem beiroa marítima nem sempre é rica de cambiantes.

Trechos possui manifestamente pobres de cor e de interesse. Tais os desolados outeiros de Fátima (vol. II, pág. 505-6), alguns aspectos dolorosos das dunas (id. pág. 695), as encostas infecundas de Sicó, certos trechos de baldios em volta de Pombal, e especialmente as sucessões monótonas dos infindáveis pinhais, de entre Quiaios e Mira. Mas estas manchas de paisagem, pouco interessantes, não deixam por vezes, elas próprias, de possuir os seus valores íntimos e de ter, em alguns casos, para quem viaja por curiosidade emocional, / 62 / o dom de valorizar a surpresa de certos espectáculos. Assim é, por exemplo, o maior interesse da aparição de Coimbra para quem, vindo pela estrada mediocremente atractiva de Leiria, pela primeira vez a descobre!

Numerosos pontos de contemplação panorâmica existem na província, Entre os que oferecem horizontes mais vastos e harmoniosos apontemos: a incomparável Cruz Alta, na montanha do Buçaco; o Tecto da Ferraria, na do Espinhal (vol. II, pág. 588); o Altar de Trevim, na serra da Lousã; os mirantes da Vela e da Bandeira, no promontório da Boa Viagem; a vista sobre as colinas boleadas do Lis, dos paços de Leiria (vol. II, pág. 663); o alto da Boavista nos contra fortes da serra do Açor; a varanda panorâmica da pousada recentemente construída em Serém, sobranceira a Macinhata do Vouga; o varandim do farol da Costa Nova; a Senhora da Saúde, na serra do Arestal; o cume de S. Pedro o Velho, na serra da Freita. São recordações de que o excursionista dificilmente se libertará.

Para concluir, importa apontar as duas zonas mais típicas de paisagem e de actividade que a Beira Litoral faculta a quem a procura; queremos referir-nos à paisagem da ria de Aveiro e ao grande campo de trabalho da população costeira: o areal e o mar. Embora ocupando uma percentagem reduzida de população relativamente à que se dedica à agricultura, a faina da pesca é a que imprime realmente cor específica à província, sem deixar de ser uma das suas fundamentais fontes de riqueza. Boa parte da subsistência da população, tanto das sub-regiões rurais próximas, como das serranas, até à fronteira, é a que a gente obscura da costa extrai do Atlântico e da ria. Da bela obra Pescadores, de Raul Brandão (sem dúvida um dos escritores portugueses que mais de perto apreendeu, não só o inefável da paisagem da ria e das dunas, mas os aspectos comezinhos da labuta da gente que nelas vive), extraímos algumas páginas particularmente adequadas à definição do ambiente e modos de ser da população desta orla marítima portuguesa.
 

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(1) – Por SANT'ANNA DIONÍSIO.
 

(2) – É justificadamente extinta, pois a configuração do seu âmbito era, na realidade, a mais arbitrária (cfr. vol. II, pág. 508). Simplesmente seria ainda assunto para ponderar se a Beira Litoral, substituindo, em grande parte, a incompreensível província do Douro, existente até 1936, deveria, por sua vez, dilatar-se, como se dilatou, para o sul, a ponto de abranger a região da Batalha ou se, em bom critério regional, não seria mais defensável retê-la, como nesta obra mais duma vez se sugeriu, na linha divisória das águas afluentes à margem esquerda terminal do Mondego. Por outro lado, não é decerto menos merecedora de reconsideração a ideia que houve de se levar, tanto para o norte, a demarcação da nova província do Douro Litoral, para além do rio tão profundamente minhoto que é o Ave. Ao romper-se o estabelecido quadro provincial, acaso teria sido mais adequada a formação duma província (total) do Douro, constituída pelos pendores imediatos do vale grandioso desse rio, desde Barca de Alva ao Porto, com este por capital natural. Cortando embora formações geológicas e agrológicas bastante diversas, tal vale, sob o ponto de vista etnográfico e económico, é uma das regiões do território português mais fortemente individualizadas.

No ponto de vista humano como no cenográfico, poucos rios haverá na Europa tão singularmente consequentes em beleza telúrica e em unidade de feições.
 

(3) – Expediente rudimentar de rega, análogo ao usado pelos antigos felahs do vale do Nilo; constituído por uma longa vara, movendo-se sobre um toro, a modo de alavanca de balança, tendo em uma extremidade, suspenso de uma vara mais fina, um balde e, na outra, um contrapeso para facilitar a manobra simples de o guindar. Estes dispositivos são particularmente numerosos nas sub-regiões da Bairrada e da Gândara.

 

 

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