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Manuel J. G. Carvalho - Nação, nacionalismo e democracia em Jaime de Magalhães Lima - 1999

2. O pensamento sócio-político de
 

Jaime Magalhães Lima


 

2.1. O liberalismo

 

A TENDÊNCIA oitocentista para perceber o liberalismo de forma redutora, quase sempre circunscrito a parâmetros sócio-políticos e económicos, bem patente na praxis do Estado liberal, está longe de enformar o pensamento limiano. O liberalismo de Jaime Lima é de todos os tempos e de todos os homens, pretende-se do homem global, e é, acima de tudo, um espaço de liberdade in fieri, já que,

«além e muito além de político, em esferas infinitamente mais transparentes que essa muito turvada em que a política se agita, o liberalismo abrange toda a feição e expressão da vida humana, e verdadeiramente não tem data nem lugar de nascimento e habitação. em tantos lugares e há tantos séculos surgiu e nos iluminou. E onde quer que o encontremos é o sinal de que aí os homens entraram na idade do conhecimento e da razão. Com esta condição se confunde. É contemporâneo da alma humana e na sua ubiquidade se dilata.» (Lima, 1969: 34),
 

não é algo que de chofre e revolucionariam ente se imponha, ignorando a realidade social de cada País. Emerge aqui a crítica organicista e anti-individualista, adepta de uma intervenção / 45 / política calculada e estribada cientificamente, para que a harmonia das sociedades não seja quebrada e o caos não suceda à ordem, mas também se descobre a ideia reformista e anteriana de revolução, pois

«A Natureza não admite revoluções nem as sociedades as admitem porque são organismos; um país transforma-se, não se substitui a poder de leis e de decretos. Um político novo opera por infiltração, renovando lentamente os elementos velhos, eliminando gradualmente os elementos nocivos. Não há, não pode haver mutações rápidas de cenário, de actores e de situações. E é exactamente porque se desconhece esta verdade, aliás incontestável, que o pessimismo tem entre nós tão bons adeptos.» (Lima, 1933a: 218)
 

Estamos perante ideias amadurecidas, explanadas num escrito de 1897(46), no qual pretende analisar criticamente a passagem de Oliveira Martins pela governação, condenando-lhe a estratégia, mas não o pensamento com o qual se identifica e se identificou na altura desses acontecimentos, pois, como vimos, Magalhães Lima não regateou o seu apoio ao programa da «Vida Nova». Anos depois, escrevendo no décimo sexto aniversário da morte de Oliveira Martins(47), será mais compreensivo em / 46/ relação às tergiversações políticas do «filósofo», assumindo a nova atitude com a humildade de quem evolui

«no correr dos anos, corrigindo, emendando, acrescentando e suprimindo, à medida que a jornada pelo mundo e a feição dos tempos nos esclarecem e aconselham, mostrando-nos pontos de referência até agora ignorados, aspectos novos anteriormente nem sequer suspeitados.» (Lima, 1933a: 230)
 

A adesão de Jaime Lima ao programa da «Vida Nova», e posteriormente ao Franquismo e à dissidência regeneradora, prende-se com a sua ideia de liberalismo e a sua atitude anti-individualista. Se a sociedade é um organismo, ela necessita da ordem que estabelece a ligação entre todos os seus órgãos, cujo funcionamento harmónico é indispensável à paz social e à felicidade dos povos, porque

«O indivíduo, ser social, estuda-se na História, no que foi, e, na sociedade, no que é. Como o naturalista estuda o animal na sua anatomia e filosofia e na sua evolução, na sua vida, relações e desenvolvimento de todos os seus membros e de todas as suas funções, o que estuda política estuda a sociedade tal qual é, tal qual foi, tal qual vive, estuda a sociedade na vida e relações presentes, no desenvolvimento histórico de todos os seus órgãos e de todas as suas funções.
Desagregando aquilo que era inseparável, considerando o indivíduo fora das suas relações com os outros indivíduos, quando estas mesmas relações constituem a sua substância como ser social, a teoria individualista punha de parte o primeiro elemento de estudo e partia duma falsa abstracção, que, necessariamente,
/ 47 / havia de produzir todas as desgraçadas consequências práticas que realmente produziu.» (Lima, 1886: 11)
 

O escritor aveirense rejeita os valores da nova sociedade burguesa, materialista e geradora de crescentes e gritantes desigualdades sociais, com novos senhores substituindo-se aos antigos, e o novo-riquismo promovendo a subversão dos valores que, desde sempre, tinham alimentado a coesão do tecido social:

«Se houve épocas de ambições terrenas, foi o século XIX. Deixa-nos um espírito de ganância, de luta e aspereza na conquista dos bens do mundo, que sempre existiu, é certo, mas nunca se mostrou tão orgulhoso, principalmente tão isento de influências que o equilibrem. A santidade, significando desprendimento das riquezas e humildade da vida externa, nunca foi menos apetecida do que em nossos dias. Houve tempos em que abundavam guerreiros e heróis, acabando monges e eremitas; hoje, o heroísmo, depois de se revestir de medalhas, acaba rico e obeso, com boas e chorudas rendas, criadagem basta, regalos de toda a espécie.» (Lima, 1902: 275)
 

A rejeição do individualismo liberal tinha-a Jaime Lima bebido na Universidade, como atrás assinalámos. Por ali campeava a «lição filosófico-jurídica de Ahrens, discípulo de Krause» (Catroga, 1981: 355ss), e a ideia corporativa com que Costa Lobo pretendia sanar os excessos de individualismo e promover a reorganização da sociedade. O convívio com Antero de Quental e Oliveira Martins, este último também influenciado pelo krausismo do belga Ahrens (Catroga, 1981: 363, n. 53), / 48 / terá contribuído para cimentar o pensamento político de Jaime Lima, e também, ainda neste contexto, não podemos desprezar os contributos do franciscanismo e de John Ruskin, bem como os escritos de António Serpa (Lima, 1915a: 29-32), seu correligionário do Partido Regenerador.

A crítica limiana ao liberalismo ortodoxo incidia sobre diferentes aspectos das suas manifestações mundivivênciais. Na economia denunciava a duplicidade

«que mal proclamava os seus propósitos democráticos de repartição equitativa da riqueza, logo achava razões excelentes para fazer medrar na indústria as aristocracias capitalistas absorventes, incomparavelmente mais despóticas que o feudalismo territorial de outras eras.» (Lima, 1925: 12);

na literatura a denúncia centrava-se na ambiguidade que lhe permitia manifestar-se

«por um lado guindada em exaltações românticas de cabeleira ao vento e por outro regrada e pautada na ponderação das formas clássicas, penteada e até sujeita a rigorosa tonsura» (Lima, 1925: 14);
 

no campo ético insurgia-se contra uma moral

«acautelada contra todos os extremos e tiranias de princípios únicos e para a qual os sete pecados mortais entravam a ser postos em simetria com as virtudes que os corrigem, de modo que a sua triste condição de réus não os vexasse demasiado, e virtudes e pecados pudessem sentar-se fraternalmente em o mesmo banco» (Lima, 1925: 15);

/ 19 / por fim, censurava o vazio de uma

«religião, ora alentando-se nos filtros vivificantes do espírito, ora abdicando, passiva e menos crédula, nas prisões mortais da letra, sempre oscilando entre a obediência divina do Senhor e as complacências com o mundo.» (Lima, 1925: 14-15).
 

Eram estes os compromissos do liberalismo, presentes igualmente na vida política, e era contra este «espírito de transigências e medianias» (Lima, 1925: 13) que se levantava a voz do eremita do Vale do Suão, ferido na sua verticalidade e pesaroso perante os resultados de tal procedimento.

Jaime de Magalhães Lima entendia o liberalismo como um espaço «de respeito mútuo entre os homens», espaço de autonomia e de liberdade, liberdade de acção e de pensamento, incompatível com qualquer tipo de poder absoluto ou autocrático. Mas este espaço tinha uma alma, melhor dizendo, uma alma nacional, cerzida de laços familiares, de valores morais e de religião, que era preciso defender e perpetuar (Lima, 1969: 32-33). Daí a sua recusa de modelos transnacionais e o assacar de culpas à Revolução Francesa, acusada de responsabilidades na dissolução moral (Lima, 1886: VI) e exprobrada pela exportação de valores e de sistemas políticos que pretenderam uniformizar

«o direito e os costumes e a arte e a economia dos povos e das nações; à sua obediência sujeitando todo o modo de ser dos homens, individual ou colectivo.» (Lima, 1969: 34)


/ 50 / Perante tais premissas, não surpreenderá que Jaime Lima identifique o liberalismo corrupto e desviador com o período aberto pela Regeneração, ou que destaque, como pura, idealista e desinteressada 

«toda aquela soberba edificação liberal, em que tinham cooperado o génio portentoso de Herculano, a arte subtil de Garrett, a elevação moral dos Passos e os impulsos heróicos de José Estêvão, e o saber de Mouzinho, e a austeridade de D. Pedro V, e a escola de Rodrigues Sampaio.» (Lima, 1925: 18)


É que, por estas paranças, estávamos ainda no primeiro Romantismo, e os valores, a arte, as raízes e as políticas permaneciam nacionais, respeitavam a idiossincrasia portuguesa, não tinham sido corrompidas pela aculturação posterior.
 

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(46)LIMA, Jaime de Magalhães – A influência de Oliveira Martins: «Os ideais de Oliveira Martins» de F. Diniz de Ayalla. “Tarde”. Lisboa. (2 Set. 1897). Publicado posteriormente em Lima (1933a: 215-219).

(47)LIMA, Jaime de Magalhães – Oliveira Martins: O seu carácter. O Porto. Porto. (24 Ago. 1910) 1. Publicado posteriormente em Lima (1933a: 229-238)

 

 

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