Saudação
EDUARDO CERQUEIRA
No
meu tempo de miúdo − que me vai ficando já na recordação delido e
indistinto como um sonho − o bombeiro desfrutava de um aliciante
prestígio, que lhe conferia as auras e a dignidade de modelo para as
nossas infantis tendências de macaqueação.
Estou em crer que a pequenada de agora, com
as atenções absorventemente suscitadas pelos ases, as proezas e os
pleitos desportivos, se suporia amesquinhada com a mera hipótese de lhe
apontarem como praticável o nosso entretém anacrónico de «brincar aos
bombeiros». Mas aqui há umas quatro décadas de anos, na época
pré-civilizada em que os relatos radiofónicos não ocorreriam a uma
imaginação divinatória tão fértil como a de um Júlio Verne, a bola de
câmara-de-ar era quase tão inacessível como hoje o planeta Marte, e os
brios nacionais ainda se arrastavam na triste indigência de não poderem
enfeitar-se com os louros dos triunfos futebolísticos a quejandos.
Então, a petizada, a par de uns jogositos
inglórios e sensaborões, de alguma tropelia ingénua, de qualquer
aventurosa incursão em despique com a do bairro vizinho, aplicava a sua
tineta de imitar os adultos e a irreprimível necessidade de agitar-se no
arremedo desses homens generosos que, sem outro prémio além de servir o
semelhante, arriscavam o sossego e a vida, e tinham o ânimo forte, a
destreza atlética, o garbo inalterável e a olímpica indiferença pelos
riscos mais inquietantes.
Com capacetes de papelão e machadas toscas
de madeira, insígnias recortadas em papel de cor que a cola de sapateiro
mal fazia aderir às blusas das horas de folguedo, ser «bombeiro»
constituía um prazer e um orgulho.
Sem dúvida a impoluta farda de gala; o
reluzente capacete metálico; as paradas e cortejos cívicos onde ao
bombeiro se conferiam primazias de evidência; as inverosímeis agulhetas
que esguichavam água até aos telhados das casas mais altas; as escadas
articuladas com uma presteza insuperável; a capacidade acrobática dos
participantes nos simulacros; os apitos dos comandantes, imperativos e
milagreiros como uma varinha mágica que tudo movesse com disciplinada
exactidão, exerciam uma forte influência na miudagem.
Mas, mais fundo e mais alto do que as
exterioridades, impressionava o fervor que animava os homens na acção
filantrópica; a abnegação individual diluída no trabalho de equipa e
quase sempre relegada ao anonimato; o impulso de fraternidade humana,
despida de quaisquer laivos de egoísmo, isenta de toda a sorte de
predilecção e lateralidade; o ser o amigo do próprio inimigo, se
adregasse de pender sobre ele a ameaça ou o dano.
Cingíamo-nos, decerto, ao que estava ao
nosso alcance: à canhestra imitação, reduzida à escala do nosso material
de fancaria e da compleição de petimetres com prosápias de meter lanças
em África. Mas, para o resto, laborava em voos de águia, a fantasia
desfrenada e a inesgotável capacidade de sonhar e de crer nos sonhos
como nas realidades mais autênticas.
Apagar o fogo convencionado, dominar
labaredas imaginárias, arrancar ao suposto braseiro algum camarada,
subalterno ou submisso, a quem fosse cometido o papel de entrevado,
eram, ao fim, os nossos altos propósitos de humanitarismo platónico.
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O que nos incentivava, o que incendia os
nossos entusiasmos juvenis era a cintilação daquela «chama» que conduz a
apagar as chamas, aquele arder no amor do próximo que traz a satisfação
no esforço oferecido e torna a dor alheia mais merecedora do que a
própria.
E, se tudo restava no âmbito da brincadeira
improfícua, havia, por detrás da aparência insignificante, uma expansão
do sentimento, um propósito puro de revestir a traquinice de um sentido
que a sobrelevasse.
Assim fui «bombeiro», e dessa missão me
reformei, ainda de calções. Bons tempos, os dos calções! Despi com eles
inúmeras quimeras − que o fato de homem tolhe a gente para toda a
vida...
Demiti-me de «bombeiro», e quantas coisas
mais que desejaria ser! Ficou-me, todavia, mais consciente, embora
inoperante, a tenaz admiração por esse voluntariado de bem-fazer; a viva
gratidão pela vigília em que permanentemente se coloca para acudir às
aflições alheias; o apreço por essa forma nobilíssima de desinteressado
sacrifício, a que não sei afoitar-me.
Fiquei na convicção de que exaltar os
bombeiros corresponde a preitear uma virtude que é apanágio de poucos;
e, mais do que serviços fruídos, é reconhecer o mérito de quem dá sem
recompensa, e não a pede nem a ambiciona.
Fiquei no dever de lhes afirmar, em todos os
ensejos que se me proporcionem, uma palavra de louvor e homenagem, se me
não é lícito dizer de solidariedade. /.../
JANEIRO DE 1957
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