Escola Secundária José Estêvão, n.º 11, Jan.- Mar. de 1994

"Não me surpreenderia, com efeito,
se fosse verdade o que disse Eurípedes:
Quem sabe, a vida é uma morte,
e a morte uma vida?"
Platão, "Górgias"

É com esta citação que João Guimarães Rosa abre a sua "estória", Páramo, onde romanceia o sofrimento que é viver nos tectos do mundo, lugar onde impera a dispneia e onde o sentimento de morte se apodera do homem.

Vem isto a propósito da leitura do XVI Diário de Miguel Torga, o último, diz-nos ele. A linha condutora deste confessionário de 201 páginas é a interrogação obsessiva do sentido da vida do homem na terra.

Dizem-nos alguns críticos tratar-se de uma obra menor no universo literário deste autor, uma obra marcada pelo pessimismo e pelo mero relato de alguns acontecimentos que marcaram os últimos 3 anos, vistos pelas lentes ofuscadas de um homem doente e triste. Não o creio.

Se compararmos algumas passagens da prosa roseana – mormente o seu discurso de tomada de posse na Academia Brasileira de Letras, em 16 de Novembro de 1967, três dias antes de falecer  – com este XVI Diário, vemos alguns pontos de contacto entre estes dois gigantes da literatura de expressão portuguesa. Ambos são médicos, ambos são cultores exímios da nossa língua – Torga usa-a com propriedade e sobriedade; Guimarães Rosa foi um dos maiores "inventores" da língua portuguesa, deixando cerca de 750 neologismos, afirmando que «Somente renovando a língua é que se pode renovar o mundo». A medicina aproxima estes dois homens, embora de forma mui diversa – «Sim, fui médico, rebelde, soldado. Foram etapas importantes da minha vida, e, a rigor, esta sucessão constitui um paradoxo. Como médico conheci o valor místico do sofrimento; como rebelde, o valor da consciência; como soldado, o valor da proximidade da morte.», Guimarães Rosa. "E aqui estou na vala comum de uma enfermaria a ver agonizar outros infelizes à minha volta. Passei a vida a tratar doentes, e fi-lo com todas as varas da alma. Não fiquei a dever humanidade a nenhum. Mas faltava-me a prova suprema de sofrer sem esperança numa cama ao lado deles.", Miguel Torga. – muito embora Guimarães Rosa tenha exercido pouco tempo, já que enveredou pela carreira diplomática. Pelo contrário, Torga foi, antes de mais o médico, e não podemos deixar de sentir um choque de emoção quando o senhorio do seu consultório, no dia 20 de Maio de 1992, lhe pede que vague o local, pois deseja efectuar obras de melhoramento, instalando nesse edifício um banco novo. Diz (chora) o escritor: «No fim da entrevista, em que levaram a melhor, apetece-me chorar de desespero. Naquele velho refúgio que vai ser demolido e remodelado, estão muradas a minha e outras vidas. Das duas janelas que lhe davam luz, perspectivei durante meio século o mundo e as tragédias dele. Ali enxuguei / 32 / muitas lágrimas, resisti a muitas tentações, remediei até onde pude erros da natureza, ouvi as mais íntimas confidências, sonhei, acudi a muitas aflições, dei o melhor de mim.»

Quer o discurso de tomada de posse de Rosa, quer o Diário de Torga, são ambos testamentos espirituais de dois grandes vultos da literatura universal. Nas obras literárias entrever o homem que está por detrás do escritor e podemos ouvir as várias vozes daqueles que com ele se sentam a escrever. Nestes dois documentos, embora constituam obras de arte buriladas pela pena do artista, temos o homem sem máscara, apenas uma voz, a verdadeira, a sofrida, aquela que se ergue bem alto.       

Torga e Rosa. Nos nomes de ambos temos apenas afastamento: Torga, apelido tomado e escolhido, significando dureza, agrura, resistência às intempéries; Rosa, apelido de baptismo assumido, doce, carinhoso, sofrido. Torga que se levanta quando a morte o tenta derrubar; Rosa que demora 4 anos a tomar posse de uma cátedra conquistada a pulso, para morrer três dias depois, avisando todos os amigos de que não duraria muito mais tempo.

"É quando o homem vem inteiro, pronto de suas próprias profundezas." É assim que Guimarães Rosa define a morte no seu discurso de tomada de posse na Academia Brasileira de Letras. Poucos terão sido os teólogos que definiram tão profundamente e tão completamente este mistério insondável que vem coabitando com o homem desde a noite dos tempos.

O problema da morte é um tema recorrente no autor de Grande Sertão: Veredas. Diz-nos ele que «as pessoas não morrem, ficam encantadas», pois para Rosa o mundo é mágico e nós nada sabemos, mas desconfiamos de muita coisa… Para Torga a ideia da morte – da sua morte – torna-se-lhe uma obsessão, não tanto pelo medo da dor física, – essa ele já a sofre há alguns anos – mas muito mais pelo sentimento de interrupção de um labor que ainda não chegou ao seu términus. Esse grito de insatisfação perpassa ao longo de todo o Diário XVI e atinge o seu auge no dia 20 de Setembro de 1990, quando Torga confidencia – «Já não tenho tempo, nem forças, para escrever mais nenhum livro. Levo o sétimo Dia da Criação atravessado no pensamento. Era o meu lavar dos cestos. O meu de profundis.»

Rosa foi um transformador da língua portuguesa. Neste contexto, compreendemos sem dificuldade que, na prosa de ficção roseana, as palavras mortas sejam ressuscitadas, e as outras, vivas, sejam submetidas a transformações violentas; que palavras novas surjam, a revelar falhas até então despercebidas da língua. Porque, na realidade e na perspectiva de João Guimarães Rosa, o importante, o absolutamente decisório é a comunicação expressiva do ser humano com o seu semelhante. Primeiro, descobrir em si os novos territórios do sentir e do pensar e, depois, comunicá-los em total coerência expressiva. E se para tanto é necessário recriar o próprio instrumento de expressão, haja segurança científica e não faltem "cristãos atrevidos". Diz ele que a língua portuguesa se torna "uma língua in opere, fabulosamente em movimento, fabril, incoaguIável, velozmente evolutiva, todas possibilidades, como se estivesse sempre em estado nascente, apta avante, revoltosa. Sem desfigurar-se, como um prestante e moderno mecanismo, todo tratável, ela aceita quaisquer aperfeiçoamentos estruturais e instrumentais, nas exaltadas arremetidas criadoras de uma experimentação contínua."

Torga e Rosa. Dois nomes, dois homens, dois filigranistas do português. Acordos ortográficos, para quê? Quando dois países têm dois escritores modernos como estes, que usam a mesma língua e que são lidos e traduzidos numa multiplicidade de idiomas, a língua não pede acordos. Pois, como diz Torga:

– Não sei se sabe que descrever é fácil. Escrever é que é difícil. ■
 

Aliás, Escola Secundária José Estêvão

 

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págs. 31-32