Escola Secundária José Estêvão, n.º 5, Out. - Dez. de 1991


 

Há muito que ameaço o Arsélio com um texto. Parece que vai ser desta. E de que falarei?

Em tempo de saldos, usando a fraseologia economicista, falarei da pedagogia de consumo de que estamos por demais inflacionados; e, da pedagogia tipo mercadoria de prateleira, empoeirada, acusada de tresandar a bafio. Boa, para despachar a qualquer preço.

Porque, em pedagogia como no resto, importa ser "moderno", de preferência de vanguarda. Só que a modernidade, como frequentemente é esquecido, não é coisa de hoje, nem se confunde com aspectos puramente exteriores e superficiais.

Em pedagogia, o que será então, fazer "moderno"?

Transformar as aulas em sessões de debate? É um dos recursos favoritos dos sacerdotes e sacerdotisas do novo culto. E, vá de terapias de choque: debates e mais debates sobre os últimos modismos, as questões mais badaladas, le dernier cri. Ignoram, ou já esqueceram, que os escolásticos medievais sabiam fazê-los muito melhor.

O debate, como ponto de partida, dizem, é altamente motivador. De quê?

Debater significa argumentos solidamente fundamentados, com coerência, no domínio do instrumento básico que é a linguagem, na obediência a um mínimo de regras de civilidade e convivência social (respeito pela opinião dos outros, tolerância, saber ouvir, dar oportunidade a cada um de emitir a sua opinião...), na posse de conteúdos mínimos a que o debate diz respeito.

Como partir então do debate, onde tudo isto ou quase, falha?

O debate dificilmente poderá ser um ponto de partida. Digamos que ele poderá, quando muito, ajudar os intervenientes a tomar consciência do que sabem e do que está por adquirir, a fazer o ponto da sua situação. Não é, não deve ser como uma estação dos caminhos de ferro, de onde se parte ou onde se desembarca. É, talvez, um apeadeiro.

Moderno, o debate? Assim o pensaram, com certeza, os mestres escolásticos. Assim o pensam ter descoberto, qual poção mágica, os escolásticos contemporâneos. Mobiliza a criatividade e o espírito crítico? A expressão oral sai melhorada? Pode ser, às vezes até é verdade. Mas, a maior parte das vezes, em termos de comunicação efectiva entre pessoas, surge como puro ruído, em que ninguém ouve ninguém, raramente se dizem coisas realmente significativas, as relações e o clima pouco ou nada beneficiam e, no entanto, satisfaz todas as partes, pelo que aparenta ser: parece desencadear torrentes de actividade, o diálogo "horizontaliza-se", dizem. Actividade mental ou física? Diálogo "horizontalizado" ou diálogo de surdos?

E o diálogo? Era a metodologia de Sócrates, que já sabia tudo e que punha o que lhe convinha na boca dos discípulos.

Debate e diálogo, dois eficazes instrumentos de manipulação, se "bem" usados. Ontem, como hoje.

E o audiovisual ? As aulas mais clássicas não o dispensam, sobra-lhes o áudio e o visual e ainda dá para pôr uns pozinhos de alguns outros sentidos. E, acresce ainda a vantagem de o seu uso ser muito menos serializado, o modelo menos estereotipado, menos científico.

Visual – eram as pessoas (mestres e alunos compreendidos), os gestos, a expressão, a postura, a sala, o mobiliário, o quadro negro, a mão correndo nele. As vozes eram áudio, e o arrastar das cadeiras e outros ruídos vários.

Exigia ainda, ou pelo menos permitia, o concurso de outros sentidos que, com o culto dos novos meios técnicos, podem ser perfeitamente dispensados, como dispensar se pode a imagem mental ou o apelo à inteligência e ao coração. É possível, à boa maneira da ficção científica, anteciparmos já o que irá acontecer aos demais aparelhos sensoriais, o que aconteceu outrora à cauda dos nossos antepassados primatas: atrofiar-se-ão pouco a pouco e, no futuro, as pessoas vão interrogar-se sobre a sua / 23 / possível utilidade. Tornar-se-ão um outro apêndice, perfeitamente inútil.

Nas aulas, ditas audiovisuais, segundo a vulgata pedagógica mais corrente, o homem permite-se dispensar o homem, inaugurando o reinado da máquina: o mestre vivo, os alunos vivos, de corpo e mente por inteiro, tornam-se uma excrescência anacrónica; indispensáveis são, e estão lá, uma sala obscurecida, um ecrã iluminado, uns tantos olhos e ouvidos e apenas...

E o discurso do professor, no meio de tudo isto, perdeu o direito de cidade. É um apátrida, a que ninguém confessa dar acolhimento, mesmo que dê.

O que é, afinal, o discurso do professor?

Não é, com certeza, uma fotocópia deste ou daquele manual, nem uma fotomontagem do texto A + do texto B + do texto C, com cortes como é óbvio.

É, deve ser, um texto amadurecido, estruturado, que reflecte não apenas as conquistas da ciência numa determinada área, mas também o posicionamento reflectido do professor, em relação às mesmas. É o discurso do professor, não porque ele funciona como médium, mas porque, de facto, é obra sua, na qual ele se reconhece e pode ser reconhecido.

Porquê, então, o ostracismo a que foi votado e por que temos vindo a assistir à sua progressiva desvalorização?

Desvalorizado porque já não serve, porque não faz crescer, porque não ajuda a desenvolver capacidades consideradas desejáveis... ou porque ... se lhe ignoram as virtualidades, porque não é fácil para quem o constrói e o diz e para quem o ouve, porque se desaprendeu ou nunca se aprendeu...? Tantas perguntas para tão poucas respostas.

É também em nome do ensino activo que tem sido extraditado para lugar nenhum.

Ensino activo. Mais um chavão, que tem tido Piaget como inocente álibi. Que actividade? Quase sempre, o que se deixa ver é actividade física, que põe em jogo, preferencialmente, os músculos dos membros superiores (e às vezes dos inferiores), dos órgãos fonadores e sensoriais em geral. E, tudo isto, com algumas pinceladas q.b., de Piaget, lido primariamente, esquecendo que a finalidade última de todo o processo de maturação é o crescimento mental, o acesso à capacidade de conceptualizar; e que a actividade física, se é condição inicial ligada ao domínio do concreto, nas fases mais avançadas está longe de constituir a essência profunda do que no homem é humano, sendo antes um mero reflexo desta.

Confunde-se actividade com exteriorização, mesmo com certo espalhafato e estende-se, com alguma ligeireza, este modo de entender a actividade-aula, a todos os níveis do ensino, a todas as áreas disciplinares, a todos os conteúdos.

É esta a inefável leveza da pedagogia de consumo.

E, em nome dela, decreta-se que a aula expositiva (como, depreciativamente é nomeada a aula que tem como pilar o discurso do professor) anula a actividade mental.

Não deveríamos, então, nós, os da idade madura, ser colocados na prateleira, vendidos a retalho na respectiva época, já que somos o produto consumado de uma pedagogia condenada? Será que somos inaptos e ineptos, em termos de instrumentos linguísticos, lógicos, de capacidade criativa, de espírito crítico, capacidade de entrega? Paralíticos mentais? Terão os mestres do passado sido mestres-castradores?

Recordo... recordo-me do professor Miguel Baptista Pereira, um verdadeiro mestre, e da vivacidade e força da sua exposição. Nela, como noutros, a palavra falada, ainda que mais efémera, não é menos importante que a escrita. E, às vezes, é bem menos efémera do que parece. Fica gravada, para sempre, na mente daqueles que a ouviram.

Será que ficaram diminuídos, intelectual e afectivamente, os que tiveram o prazer de algum dia ouvir, ao menos na TV, o prof. Vitorino Nemésio? No seu discurso, a palavra e a inteligência – a palavra-inteligente – eram tudo (apesar de se servir de um médium dito audiovisual); tinha bem mais impacto e consequências duradoiras do que muitos outros, com enormes recursos audiovisuais que neles são tudo, enquanto o discurso estruturado é nada ou quase nada. / 24 /

E, olhando por aqui mais perto lembro os Drs. Assis Maia e José Teixeira. Ter-nos-ão eles circuitado processos mentais, diminuído irremediavelmente as nossas ligações neurónicas ? Será?

Terão sido, todos eles e tantos outros, verdadeiros mestres-castradores e serão os mestres da pedagogia de consumo os "verdadeiros mestres-pensadores"?

Será que sou daqueles que, em surdina, cantam ainda o "ó tempo volta p'ra trás..." e gostaria de ver repostos velhos processos?

O que, de facto, está em causa não são os instrumentos, as estratégias, a metodologia, os recursos e outros conhecidos jargões do ofício. Em si mesmos, não são bons nem maus. Mas é mau, mesmo muito mau, todo o exorbitar que faça pender o prato da balança só para um lado, o não fazer a destrinça entre a escolaridade obrigatória e os cursos pré-universitários, continuando a dar um tratamento infantilizante a alunos já adolescentes.

É o que se pode chamar um verdadeiro infanticídio: recusar-lhes a oportunidade de crescer, de conceptualizar, de produzir pelo seu próprio esforço imagens mentais outras, de exercitar a atenção selectiva, discriminando (naquilo que ouvem) o essencial das roupagens acessórias no plano intelectual, mas esteticamente enriquecedores (e sabendo reconhecê-lo e amá-las), de construir eles mesmos um discurso com sentido. Quanto mais de elaborar uma dissertação à maneira do terminal francês!

A exposição-dissertação não só é um instrumento de comunicação indispensável nos escalões académicos mais elevados, propedêuticos ao ensino superior (e nele mesmo); também fornece ao aluno os modelos que o inspirarão a estruturar o seu discurso próprio.

E, estruturar um discurso é, de alguma maneira, estruturar a própria personalidade.

O que está em causa é, também, a recusa do vanguardismo pelo vanguardismo, pela facilidade, pelo uso indiscriminado e acrítico, sem tomar em consideração os níveis académico e etário, os conteúdos, o momento e as idiossincrasias dos alunos e do professor. E, pelo que representa de preconceito.

É bom lembrar que a chamada pedagogia moderna (ou será pós-moderna?) tem umas boas décadas. Em tempos li, com grande prazer, alguma surpresa e muito gozo, páginas de pedagogia, há muito esquecidas, dos finais do século passado, princípios deste. Escritas vigorosamente, nelas se discutiam questões que conservam a mesma pertinência, com grande abertura e em perspectivas que deixariam boquiaberta muita boa gente, que se julga na "crista da onda", e que teria de aceitar que há muito pouco de novo à face da terra e nesta matéria, e que talvez tenhamos mesmo recuado alguns passos, sob certos aspectos.

Convenhamos, é claro, que já não vivemos na galáxia Guttemberg e não há que lamentá-lo. Trata-se apenas de um juízo de realidade, ponto final. A palavra falada circula hoje incomparavelmente mais, mas não basta à palavra circular; deverá veicular ideias, não poderá confundir-se com o palrar de qualquer arara ou catatua bem treinadas. E, se esta aprendizagem de dar sentido não tiver sido feita com a palavra, em tempo devido, como fazê-lo com a imagem, num mundo em que esta assume um papel cada vez mais dominante? E, mais difícil ainda, como fazê-lo com a imagem em movimento ou os sons que fluem em vagas que parecem submergir-nos, materiais ainda mais frágeis e perecíveis ainda que de acesso aparentemente mais fácil?

Arrastados por esta (i)lógica, professores e alunos cedem à tentação da passividade e da recusa inconsciente da profundidade, preferem os caminhos fáceis dos sons, formas, cores, imagens sensíveis que, enquanto desprovidas de sentido (que em sim mesmas não possuem) enchem, mas não preenchem ou parecem preencher, enquanto esvaziam.

Foi talvez esta uma reflexão despropositada, fastidiosa e incómoda com certeza, mas para mim necessária, no estado actual de coisas, neste inverno do meu descontentamento...

E, evidentemente, cabe-me confessar que o discurso e o audiovisual, o debate, o trabalho em grupos e a "investigação", etc., etc., podem ter coisas boas.

Fica esta outra ameaça no ar... ■

__________________________________________________

* Professora do Quadro de Nomeação Definitiva do 10º B da ESJE.

Aliás, Escola Secundária José Estêvão

 

Página anterior Índice de conteúdos Página seguinte

22-24