Escola Secundária José Estêvão, n.º 19, Maio de 1997

A mão que embala o berço

 

O debate sobre o ensino secundário espera que todas as partes discutam num plano convencional ou convencionado entre elas ou por algumas delas.

Por um lado, não há quem esteja interessado em discutir porque é que se chama ensino secundário e não educação secundária, ou porque é que se deixou de falar em ensino básico. Deve haver alguma diferença que justifique essa diferença na denominação.

Por outro, há quem atribua à escola todos os papéis à partida e avalie só uma parte dos papéis à saída.

De facto, ao ser instituída uma escola democrática e inclusiva para todos, ao defender uma escola que deve aproximar-se e respeitar as diferenças culturais (inclusivamente na diferenciação curricular), estabelece-se um modelo de escola que não pode ser pressionada pelos resultados (maus e bons) de uma minoria que seguiu os seus estudos mergulhada numa massa socialmente heterogénea (mais ou menos afastada dos saberes e cultura de qualquer escola regular) e quer prosseguir estudos superiores. Uma escola como a que esta prescrita na lei é complexa e cada uma das partes ou expectativas (ou a falta delas) que a procuram influencia decisivamente todas as outras para o bem e para o mal (no que quer que isso seja). Não se compreende que os decisores continuem a insistir num modelo de escola, por um lado, e numa avaliação de uma só das partes do seu papel, por outro. Conviria, ao menos, que, sempre que analisam ou deixam analisar os resultados da escola, fizessem um esforço de mergulhar (e fazer mergulhar os analistas) na sua complexidade.

Ironicamente, os decisores confundem o baixo rendimento da escola com as classificações obtidas no ingresso ao ensino superior ou, pior ainda, por estudos comparativos entre resultados obtidos em diversos sistemas educativos. Não têm qualquer dificuldade em falar dos maus resultados da escola portuguesa, comparando-os com as escolas de Singapura ou da Coreia Pelos métodos de selecção à partida, pelo tipo de ensino, pela cultura, pelos condicionamentos sociais, culturais e políticos e consequentes capacidades de intervenção e comportamento em sociedade, a escola de Singapura (do Japão, da Coreia,... ) não é comparável a qualquer escola da Europa ou do ocidente. Provavelmente, se as amostras de estudantes e das escolas fossem escolhidas de forma conveniente que desvalorizasse / 24 / as diferenças antes apontadas, os resultados seriam diferentes.

Se houvesse alguma coisa de válido nesses juízos, eles teriam como consequência a adopção de diferentes padrões de comportamento social, de formas de governo, e, em última análise, de modelos de sociedade que não nos cansamos de rejeitar

O fenómeno que não atinge as escolas nessas sociedades é a irresponsabilidade e a possibilidade de recusar o trabalho. Ao contrário, nessas escolas a competição é o motor e os estudantes são treinados na obediência cega (mesmo a métodos autoritários de ensino e clara e unicamente expositivos), no trabalho, quaisquer que sejam as condições que lhes silo oferecidas, no respeito absoluto pelas decisões das escolas, por mais arbitrárias que elas sejam. No nosso sistema, os estudantes e os pais podem solicitar os serviços de educação e ensino, sem que estejam dispostos a qualquer contrapartida ao sistema e sem qualquer respeito pelas suas decisões. Não estamos a falar de um ou dois casos perdidos no emaranhado das escolas Estamos a falar de um grande conjunto de estudantes que não foram ganhos por qualquer escola e que só a frequentam por não terem quaisquer outras alternativas e a quem disseram que este era um mal menor e recomendável. E, apesar disso, nenhuma classificação decidida pela escola está acima de suspeita, nem é inibidora ou promotora de prosseguimento de estudos

É um problema de sistema que não consegue, na transição eterna, criar outras escolas alternativas ou outras alternativas, nem consegue diferenciar as ofertas. De facto, a cada diferenciação aparente, corresponde logo uma uniformização (veja-se o que se passou e passa com os cursos profissionais, técnicos e tecnológicos, sempre equiparados em grau e destino; com o ensino superior politécnico e o ensino superior universitário) com vista ao mesmo destino: em frente e para o abismo. As alternativas são propostas como modo de actuação dentro de cada escola regular e todos sabemos como isso é ainda impossível (e não será sempre?) Há quem piedosamente pense que bastam algumas mudanças na mentalidade dos professores e na gestão e organização das escolas ou similares para que isso possa ser realizável gestão curricular (e avaliação) diversificada, em acordo com as diferenças sociais, regionais e de capacidades reais ou apetências dos estudantes; ligação à vida activa {a escola já nem é considerada como vida activa);.. Aos diversos papéis sociais da escola (reformatório, instituto de inserção e reinserção social, escola regular) acrescentam-lhe deste modo o papel de santa milagreira, capaz de realizar o milagre que a sociedade no seu conjunto se recusa a querer realizar.

Tenho para mim que os programas prescritos do ensino secundário são contratos sociais com prazos concretos para a realização de um conjunto de tarefas socialmente úteis - no sentido da formação/criação de recursos humanos capazes e que deve ser entendido por professores, estudantes e pais como tal. Não é razoável continuarmos a medir a exequibilidade dos programas (e a pormos em causa todos os programas) tendo por base Ião só a nossa ideia da capacidade demonstrada no acompanhamento e na aprendizagem por todos os alunos (dos quais, nem metade entendem a responsabilidade e a validade do seu trabalho ou sequer que é trabalho o que devem desenvolver) e nunca a validade e a relevância sociais que o próprio programa/contrato representam. A diversificação deve então ser entendida não como o encaminhamento de todos para o que podem não querer fazer, / 25 / mas como um resultado complexo em que estudantes diferentes terão de fazer esforços diferentes para atingir finalidades conhecidas, para realizar tarefas que, sendo iguais, exigem esforços diferentes. A diversificação e a não exclusão tem de passar pela responsabilização de todas as partes, e então pela escolha de caminhos diferentes sinalizados pela escola que todas as partes aceitem, participando e insistindo na escolha Num sistema em que todos os jovens estão juntos na orientação e na deriva há exclusão geral e os resultados da minoria capaz (economicamente, culturalmente, (???) de seguir estudos são prova da exclusão geral, pelo menos, no que respeita à posse dos conhecimentos (competências?, valores?, atitudes? nos exames?) que o sistema político determina como essenciais para o prosseguimento dos estudos.

É razoável que os professores do ensino secundário digam que ensinam bem. Há sempre um aluno (talvez coreano) que aprendeu bem o que se lhe ensinou independentemente dos métodos que se usaram. Em causa está sempre o que a maioria não aprendeu. Em causa está que, na nossa sociedade, apesar de todos os seus avanços, ainda é verdade que a maioria da população (pais e filhos) está longe da escola e dos saberes normalizadores (bem ou mal) que ela representa. E todos os exames que se façam à escola só mostram essa exclusão social que a escola, por si só, não pode redimir.

Há várias dimensões convencionadas para o debate do ensino secundário. Por razões de honra, insisto nesta e espero que a insistência tenha consequências.

(Arsélio Martins)

 

 

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págs. 23 a 25