Escola Secundária José Estêvão, n.º 6, Jan.-Maio de 1992

RAMALHEIRA VAZ NA ÁRVORE UM OLHAR

Um grupo de alunos (área de design) e de professores deslocou-se ao Porto. Fomos ver dois consagrados (Amadeo Souza Cardoso e Eduardo Viana) e uma promessa a cumprir-se – Ramalheira Vaz, o nosso colega da Escola.

Dos primeiros já tudo foi dito (mais, seria demais e não era o bastante) e já os conhecíamos. Mas do Zé Vaz só sabíamos por ouvir dizer, da sua qualidade, mas faltava-nos olhar e ver. E ficou logo o projecto de fazer Aveiro ver, também. A não perder. Temos direito a algo mais que moliceiros de bilhete postal ou outros quejandos, reservados para consumo interno e impróprios para adultos alfabetizados. As excepções reconhecem-se e anotam-se.

O que vimos, em a" Árvore", foi uma exposição síntese de dez anos de trabalho sério, conseguido – é dizer pouco –, em que o menos bom foi sistematicamente eliminado: trabalho que solicita, não apenas o olhar, mas a inteligência, em que por trás do visível se adivinha o invisível, muita experimentação, muita destruição, muito nervo, muita recusa, muita busca, muita força, muito querer.

Sente-se, também, a exigência do diálogo do longe com o perto: a distância para aperceber o plano (? ou acaso? ou intuição?) de conjunto, as grandes linhas de força; o próximo para apreender o complexo labiríntico de geometrismos, numa teia construída camada sobre camada, que quase pede para ser vista "à lupa". Que quase pede: "Apaguem a luz para ver melhor. Deitem abaixo as paredes, preciso de horizonte!"

E, por trás de tudo, uma marca – Zé Vaz – um E.T., como disse alguém. Um E.T., como "um observador em Sírius" (diria Moran), a nos olhar e à nossa cultura e às nossas raízes, um olhar que vem de algures, ao mesmo tempo fora e dentro do tempo e do espaço nossos, levando-nos a penetrar noutra dimensão onde reina a luz e apetece ir tela dentro, pelas suas camadas mais profundas, pelos corredores da memória, numa quase quarta dimensão que, em certos momentos quase parece obra de engenharia e é, sempre e sobretudo, espaço plástico de forte presença, a impor-se e a impor-se-nos.

Mas, numa obra toda ela contenção, rigor, laboratório, há que ter contenção e rigor no que dela falamos. Porque todo o empolamento é aqui descabido, é preciso conservarmos a medida. Saber calar o que não cabe ser dito, porque não pode exprimir-se em palavras.

E, porque

E os que "lêem" o que "escreve"

Na dor "lida" sentem bem.

Não as duas que ele teve

Mas só a que eles não têm.

O artista é um fingidor. ■

Ermelinda Campos


 OUTRO OLHAR

A consolidação, enraizamento e consequente assimilação de um novo dado cultural é tarefa árdua e por vezes intemporal. A coisificação de um artefacto é resultante de conhecimento científico e da praxis. É também reflexo de muito labor.

São estes os elementos que à priori todos possuímos para assistirmos à apresentação de um conceito inédito, seja qual for a ciência sobre a qual se constrói qualquer premissa.

Fruto de dez anos de trabalho, Ramalheira Vaz apresentou-se na cooperativa Árvore no Porto com uma mostra de trabalhos titulada "Em torno de um espelho do arcaico". Este título permite à partida encontrar dados para uma breve reflexão.

Partindo apenas da representação inversa e da dependência da luz que a superfície reflectora apresenta, assume a conotação intrínseca das bases sobre as quais a cultura ocidental assenta –estamos à boa maneira platónica perante imagens projectadas, sinais de um "mundo sensível" irreal e falseado no entanto, dependente da luz, o sol, símbolo do verdadeiro e real "mundo inteligível". Poder-se-á afirmar que Ramalheira Vaz apresenta imagens lúcidas, individuais e enérgicas, onde se detecta uma extrema sintonia entre a cumulação do saber e a poética expressão do elemento plástico "luz" como dado fundamental de visualização e racionalização do universo.

Consciente da representação num plano bidimensional, raramente recorrendo a uma representação tridimensional, realça energicamente formas de duas dimensões, com o seu saber fazer, a partir da inteligente colocação de matéria e modelação da luz por subtis transparências, para além da capacidade intuitiva da organização das superfícies em ritmos sincrónicos, harmonizando linhas temporalmente ordenadas e assumidas com técnica distinta a grafite, suportadas por traço rigoroso que, pela matéria, cor e ordenação se transforma em forma, convicta da limitação ambígua de espaço que a grade conota.

Insaciável, num só suporte Ramalheira Vaz desenfreadamente investiu ao longo dos dez anos, mastigando imagens, digerindo actos, propondo por fim trabalhos em cada trabalho. Assume, consciente (ou inconscientemente?) a constante capacidade de mutação de ideias, acto racional ou não (?), a capacidade de definir um ideário próprio, hábitos e vivências pessoais. São também imagens em que Ramalheira Vaz se projecta projectando um universo social onde estamos inseridos.

A obra de Ramalheira Vaz tem a dignidade consequente de quem se assume como veículo comunicador e responsável pela apresentação de valores inéditos na cultura artística portuguesa, que por certo não ficará creditada em mãos alheias. ■

Joaquim Pimenta

 

Aliás, Escola Secundária José Estêvão

 

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