Carta a um amigo

 

Agradou-me a tua inesperada visita,
fiquei tão surpreso como contente
até ao momento em que a tua timidez
se abateu sobre a notícia que tardava
transformando a breve alegria em pesar:
a morte súbita do velho amigo comum.


Nós morremos em cada morte física
de um ente querido ou de cada amigo;
a nossa morte, por seu turno, é a morte
de cada um daqueles que nos amam
e que, na militância ordeira das suas lides
vão convocando momentos marcantes
relacionados com factos insignificantes
mas carregados de gratas recordações,
vivências partilhadas em cada circunstância
e residentes nos meandros duma memória
desfocada, baralhada e talvez deturpada,
trazendo-as de volta no acaso do instante
como tivessem sido vividas ainda ontem.
E, na tentativa de se perpetuarem no calor
do entusiasmo fácil prenhe de nostalgia,
prendem-se no vento que as vai dispersando
deixando que se esfumem num tempo
onde a eternidade do esquecimento absoluto
tem a marca incontornável do irreversível
de tal modo que ninguém possa vir a saber
ter existido um corpo vivo com identidade
dotado de pensamento, de lucidez e razão,
imbuído de paixões, desejos, frustrações
e que por aqui passou, estrela cadente
sem ter deixado rasto, cinza ou mistério.

Dezembro de 2021

 

 

16-12-2021