o bacalhau

Breves Apontamentos de História

O bacalhau é uma espécie piscícola cujo habitat se estende às plataformas continentais dos países banhados pelos Oceanos Atlântico e Pacífico, em geral acima dos 40º de latitude Norte. Abundante e prolífica, tem sido uma das espécies mais pescadas ao longo dos tempos e de tal forma que recentemente houve que regulamentar as suas capturas.

Embora raramente faça a sua aparição nas águas territoriais portuguesas, o bacalhau prefere as águas mais frias a partir do mar do Norte, pelo que a sua introdução na dieta alimentar dos portugueses deve ter sido originada pelo comércio com os povos do Norte da Europa, celtas, normandos, bretões e escandinavos, que se deslocavam ao longo das costas do futuro Portugal, trocando pescado, seco ou fumado, por sal, vinho e azeite.

O tráfico marítimo ao longo das costas foi-se intensificando, não só pelos povos do Norte que desciam o Atlântico, como dos provenientes do Mediterrâneo – gregos, fenícios, cartagineses, romanos, mouros – trocando produtos originários da suas terras, estabelecendo feitorias e explorações, quando não pilhando os bens dos povos ribeirinhos ou atacando outros barcos.

É de crer que nestas operações de reconhecimento e exploração se incluísse a da pesca, conduzindo os pescadores a paragens cada vez mais distantes na procura de pesqueiros mais abundantes e fáceis.

Assim, os portugueses devem ter-se deslocado, pelo menos, até às costas da Inglaterra, onde pescariam o bacalhau, arenque e cavala, da mesma forma que os vikings percorreram as costas do Atlântico Norte fazendo a colonização da Islândia e Gronelândia, para chegar às costas do Labrador e Terra Nova.

Até ao século XV e durante mais de cinco séculos, as explorações marítimas, patrocinadas por mercadores ou grupos de mercadores com autorização dos seus príncipes, desvendam novos mundos, trazendo notícias de riquezas de países ou regiões até então desconhecidas.

Assim aconteceu com a propalada abundância de bacalhau no Noroeste Atlântico, depois da viagem à Terra Nova, em 1497, de João Cabot, veneziano ao serviço de mercadores de Bristol, confirmando as novas de João Fernandes Labrador e Gaspar Côrte-real.

A partir de então, as pescarias portuguesas na Terra Nova desenvolvem-se rapidamente, partindo embarcações de Viana do Castelo e Aveiro, que manteve a tradição de maior porto bacalhoeiro do país, até aos nossos dias.

O pescado capturado era, e foi, até há bem pouco tempo, conservado exclusivamente por intermédio da salga, seguida posteriormente de secagem ao ar, o que constitui um dos processos mais antigos de conservação, desenvolvido e utilizado pelos povos da bacia mediterrânica, como ainda se pode verificar nas ruínas romanas de estabelecimentos de salga de peixe, na costa do Algarve e península de Tróia.

Os povos do Norte da Europa, com maiores dificuldades na obtenção de sal marinho, recorrem sobretudo à fumagem de pescado levemente salgado ou, aproveitando as suas condições de climas frios e secos, a uma simples secagem ao ar (stock-fish ou peixe pau).

Apesar da sua antiguidade, estes processos são ainda hoje largamente utilizados na transformação de pescado, satisfazendo hábitos alimentares ancestrais e actualmente divulgados como produtos sofisticados – salmão, arenques, ovas, enguias fumadas, etc. – ou ainda como produtos de grande consumo, como os salgados secos que continuam a ter mercado nos povos mediterrânicos e naqueles que sofreram a sua infância cultural na África, América Central e do Sul.

/ 18 / Como processo de conservação que é, a secagem de pescado é uma indústria complementar da da pesca, não podendo ser dissociada dos seus problemas próprios, implicando facilidade e abundância da matéria-prima peixe em determinado momento e a necessidade de armazenagem do produto para utilização em períodos de escassez ou favorecendo o transporte e comércio a distância, sem riscos de perda ou avaria.

Mas, mais do que isso, constitui também um processo de transformação por limitar a actividade biológica própria do pescado até se atingirem características organolépticas desejadas, de molde a tornar o pescado mais apetecido e consequentemente valorizado sob o ponto de vista comercial.

Arrastão de popa a pescar num banco de gelo

Embora a utilização da secagem de pescado salgado se estenda a várias espécies, de preferência com baixo teor de gordura, como o bacalhau, o carapau, raia, cação e polvo, não raro se utilizam espécies de pesca abundante, mas com maior teor de gordura, como a cavala, destinadas sobretudo à exportação para mercados africanos, onde se mantêm hábitos introduzidos pelas indústrias da pesca e secagem instaladas no tempo da colonização.

O bacalhau salgado seco constituiu ao longo dos tempos umas das bases de alimentação do povo português, nomeadamente do interior, onde o peixe fresco não chegava e a carne limitada a dias de festa por mais cara ou por o seu consumo estar vedado em determinadas épocas do ano, por imposições religiosas.

A pesca do bacalhau foi-se desenvolvendo, embora sempre insuficiente para assegurar o consumo, pelo que se manteve a necessidade de importar bacalhau salgado seco que ingleses, franceses e suecos negociavam em troca de sal, vinho e couros.

Os barcos portugueses frequentavam os Bancos da Terra Nova, Nova Escócia e Labrador, onde chegou a existir ocupação temporária que a toponímia local ainda hoje recorda e as pescas desenvolveram-se de tal modo que «no reinado de D. Sebastião chegou a ser publicado um Regimento para as frotas da pesca do bacalhau».

Porém, com a ocupação por Castela em 1580 e a requisição de toda a frota portuguesa para ser incorporada na Invencível Armada, destruída pelos Ingleses em 1588, a marinha portuguesa incluindo a de pesca, sofreu um rude golpe.

As tentativas para fazer ressurgir as pescas do bacalhau depararam depois com dificuldades de acesso aos pesqueiros tradicionais, pelas disputas que ali se desenvolviam a partir do fim do século XVI, entre a França e Inglaterra pela posse das terras do Canadá e posteriormente pelas lutas de independência da América.

O Marquês de Pombal procurou relançar a pesca do bacalhau sem grande êxito e as invasões francesas voltaram a dificultar o seu desenvolvimento.

As importações provenientes de Inglaterra aumentam consideravelmente e só em 1830 se criam incentivos para a pesca do bacalhau, que originaram a criação da Companhia de Pescarias Lisbonense.

Em 1848, esta enviou 19 navios com uma arqueação bruta de 2374 toneladas e 325 homens de tripulação que capturaram 659 toneladas, o que deveria corresponder a 5% do consumo.

Em 1888, das 21108 toneladas consumidas só 932 tinham sido pescadas por navios portugueses, sendo 14891 importadas de Inglaterra e 5154 da Suécia e Noruega. O valor das 21108 toneladas foi de 1682261,000 réis!

O mais curioso é que, em 1885, se levanta o problema de saber se o bacalhau pescado por navios portugueses na «Terra Nova deveria ser considerado como produto nacional e como tal sujeito / 19 / ao imposto interno de pescado de 6,6% ad valorem e respectivos adicionais, ou classificado de mercadoria estrangeira, sujeito ao direito de importação, nesse tempo fixado na pauta aduaneiros em 33 1/2 réis por quilo. Consultada a Procuradoria Geral da Coroa, decidiu-se que fosse considerada mercadoria estrangeira»...

Construção do arrastão bacalhoeiro (clássico) «Santa Mafalda» – Estaleiros de Livorno, 1947.

Só em 1886 o bacalhau pescado por navios portugueses é considerado como produto nacional, mas só para os 12 então existentes...

O direito pautal foi elevado para 39 réis o quilo, enquanto que em acordos bilateriais com a Rússia e Noruega, em 1896, os direitos foram reduzidos a 34 réis. Isto é, o bacalhau pescado por navios portugueses, além dos 12 que já existiam em 1886, pagava direitos superiores ao do importado...

A situação só vem a regularizar-se, curiosamente, em 1901, baixando o imposto a 12 réis por quilo sobre bacalhau salgado fresco.

Entretanto, a pesca do bacalhau, até aí reduzida à actividade de duas empresas, Parceira Geral de Pescarias (Bensaude) e Mariano & Irmão, esta última com a Figueira da Foz, como porto de armamento, volta a suscitar o interesse de empresários utilizando-se 31 navios já em 1909, que produziram 4972 toneladas, e 38 em 1915 que desembarcaram 3900 toneladas de bacalhau salgado verde e representavam 17% do consumo nacional, a percentagem mais elevada de participação da pesca nacional nos primeiros 30 anos do século!

1930 é um ano difícil, em consequência da associação da crise económica mundial, baixando drasticamente os preços do bacalhau, a uma surpreendente carência de peixe nos tradicionais bancos da Terra Nova.

Antiga seca do bacalhau –  recolha ao fim do dia

Em 1931, a Empresa de Pesca de Aveiro, constituída em 1928, com três lugres construídos em 1929, para evitar a crise em que então a indústria se debatia, toma a iniciativa de os enviar para a pesca nos mares da Gronelândia que, pelo sucesso alcançado, não mais deixaram de ser frequentados pela frota portuguesa.

Com este novo alento a indústria da pesca do bacalhau desenvolve-se a partir de 1934 pela construção de novos navios.

No esforço de renovação e actualização da frota, cabe igualmente à Empresa de Pesca de Aveiro o mérito de ter mandado / 21 /construir na Dinamarca, em 1936, o primeiro arrastão da frota bacalhoeira de acordo com os mais recentes planos.

Túneis de secagem

A indústria desenvolve-se com a construção de novas unidades atingindo a produção dos 71 navios existentes em 1955, 81 % do consumo de 54 340 toneladas de bacalhau salgado seco.

A partir de 1967 a participação da produção nacional inicia a sua diminuição gradual para se cifrar em 11,23 % em 1983, descendo igualmente o consumo de 80 920 toneladas em 1969 para 60247 em 1983.

A capacidade da frota, que em 1935 era de 9726 tons, aumentou progressivamente até 102000 tons, em 1965. Contudo, o rendimento da pesca efectuada em relação à capacidade da frota, desceu de 85-95% para 67-77%, consequência de uma diminuição da quantidade de peixe e da não evolução dos métodos de pesca utilizados.

Até aos anos 60, os navios fazem uma só viagem, de Março–Abril a Setembro–Outubro e empregam elevado número de pescadores (pesca à linha), enquanto que outros praticam já o arrasto com mais vultuosas capturas.

Porém, enquanto a pesca à linha era selectiva, a pesca do arrasto não o é, e os navios portugueses, só preparados para a salga, viam-se na contingência de lançar ao mar todas as espécies capturadas além do bacalhau.

Daí a sentida necessidade de evolução da frota para navios congeladores ou transformação dos arrastões salgadores, pela instalação progressiva de equipamento de congelação.

Entretanto, o aumento do esforço de pesca nas águas canadianas, não só da frota portuguesa, mas sobretudo das dos países mais poderosos, provocou uma sensível diminuição da quantidade anual de peixe capturado, em mares onde se julgava que isso não pudesse vir a acontecer.

Frota da EPA atracada em Aveiro

A partir de 1977, a actividade da frota nacional de pesca do bacalhau sofreu uma redução considerável por não poder continuar a frequentar livremente os pesqueiros tradicionais, instituída que foi a implantação das zonas / 28 / económicas exclusivas de 200 milhas, sobre as quais os Estados costeiros passaram a exercer direitos soberanos para fins de exploração dos recursos naturais, biológicos ou não.

O acesso aos pesqueiros e as capturas passaram a ser limitados a quotas anuais, estabelecidas por negociações bilaterais com os Estados costeiros e com organizações internacionais competentes em matéria de gestão e conservação dos recursos, mesmo no alto mar (NAFO).

Em 1985, a frota, actuando no Atlântico Noroeste e Nordeste, era constituída por 53 navios com uma capacidade de carga de 29 000 tons para congelados e do equivalente a 62000 tons de bacalhau à saída da água, para salgar.

Mau tempo no mar alto – arrastão clássico de capa com brisa dura

Considerando a possibilidade de duas viagens por ano, a capacidade anual de captura seria aproximadamente dupla da indicada (58000 de congelados e 124000 de bacalhau fresco).

Como as quotas de pesca atribuídas pelo Canadá e Noruega, em consequência de acordos bilateriais, e as atribuídas por organizações internacionais (NAFO) totalizaram 55985 tons em 1985 (28815 tons de bacalhau e 27 170 tons de outras espécies), resulta que a capacidade de captura era excedentária em 95000 tons de bacalhau e 30000 de outras espécies, ou seja mais de metade da frota existente.

Com a adesão à CEE em 1986, cessaram os efeitos dos acordos bilaterais, não se tendo verificado ainda possibilidades alternativas de captura, pelo que a actuação da frota longínqua terá que se adaptar aos recursos disponíveis, que poucos são.

Com a interdição do acesso aos pesqueiros tradicionais dos portugueses desde o fim do século XV, a pesca é agora limitada a águas internacionais, onde o bacalhau não abunda, e o abastecimento de bacalhau salgado seco passou a depender quase exclusivamente da importação de países onde a espécie tem o seu habitat e é protegida como fonte de riqueza.

Bibliografia:

AMZALAC, M.B. – A pesca do bacalhau, 1923

ROQUE, M. A. – O bacalhau na economia portuguesa, 1981

MOUTINHO, M. – História da pesca do bacalhau, 1985

DEPARTMENT OF FISHERIES – CANADÁ – Sea, Salt & Sweat, 1977

ALBUQUERQUE DE MATOS

 

Exposição de bacalhau para secagem

 

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