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Discurso de Egas Salgueiro

Ex.mas Senhoras

Ex.mos Senhores

Toda esta admirável região, banhada pela airosa Ria de Aveiro, onde vem desaguar o Rio Vouga, nascido nas fragas da Beira Alta, depois de ter dado seiva aos campos por onde passa e de ter feito cantar inúmeras azenhas e moinhos e de espalhar a esmo, trabalho, pão e alegria no seu percurso, e que na foz, pela real beleza das suas margens, foi crismado em Rio Novo do Príncipe, toda esta região tem sido desde sempre, berço de pescadores ousados e destemidos.

São bem conhecidos os "Mirões» de Mira, os «Íbalhos» de Ílhavo, os «Cagaréus» de Aveiro, os «Gafanhões» das várias Gafanhas formadas nos areais sem fim e que após porfiada labuta transformaram em ubérrimas terras de pão, e ainda os «Murtoseiros» da Murtosa e os «Vareiros» de Ovar. Todos estes valentes homens do mar têm empregado o melhor dos seus esforços e das suas vidas na rude faina da pesca, ou tripulando os antigos barcos das xávegas, de reminiscências fenícias, na procura de peixe a poucas milhas da costa, ou os bacalhoeiros da Terra Nova, ou as traineiras da sardinha e ainda os vários tipos de embarcações pesqueiras utilizadas na Ria.

Não é, pois, de admirar que as gentes nascidas nas regiões ribeirinhas da Ria, habituadas desde sempre aos fortes cheiros da maresia, criadas a desenterrar o berbigão nos vastos areais molhados pelas águas salgadas da Ria, ou na apanha do mexilhão que se alapa nas pedras dos molhes da entrada do porto, tenha no sangue o vírus do mar, o pensamento todo fixo nas coisas do mar, arrisque cabedal, além de trabalhos e canseiras, na exploração do mar.

/ 26 / Foi na sequência ou por imperativo desta tendência para o mar, que há quarenta anos, em 1924, um grupo de homens oriundos desta terra dos «Cagaréus», organizou uma sociedade para a pesca do bacalhau, que mais tarde, nos anos de 1928 e 1935, se reorganizou sob a denominação de Empresa de Pesca de Aveiro. Nascera essa sociedade da compra de um lugre bacalhoeiro tão pequenino que, se ainda hoje existisse, faria o pasmo de muita gente, tão reduzido era o seu tamanho e tão minguada a pobreza da sua segurança, comparado com os altaneiros e seguros barcos-motores e arrastões dos nossos dias.

O gerente da empresa formada tinha a seu cargo todos os serviços de escrita, expediente e organização da secagem e venda do bacalhau e dispunha apenas de um pequeno ajudante para os recados. O escritório, em proporção com a importância da frota, limitava-se a um modesto quarto, cujo mobiliário não ia além de uma tosca mesa de pinho para o gerente, e uma banqueta formada pela união de duas ou três tábuas da mesma madeira para o ajudante. Não será descabido fazer-se aqui a comparação entre o número de empregados de escritório existentes quando a EPA iniciou a sua actividade, que não passava da unidade, e o de hoje que é de sessenta.

Quarenta anos da EPA, vividos com muitas horas dolorosas, mas sempre cheias de fé, com muita tenacidade dispendida e muita luta travada, ainda que de mistura, também, com largos instantes de sã alegria e legítimo contentamento, principalmente quando uma nova unidade pesqueira vinha sulcar as águas da Ria aumentando a sua frota, embora com sacrifício material dos sócios, e também de alguns deles, com teres e haveres comprometidos no empreendimento.

Sentia-se bem o crescimento da sociedade que se ia consolidando, e que hoje se nos afigura representar para a economia regional alguma coisa de real valor. Constituiu trabalho insano, penas de toda a ordem, erguer pedra a pedra esta obra de quarenta anos. Custou muito suor, sangue e lágrimas, no dizer crítico de alguns sócios, que viam sacrificados os seus dividendos pela necessidade de capitalizar lucros para possibilitar o aumento da frota e das instalações em terra.

É esta a obra que V. Ex.as tiveram ocasião de ver e que não está ainda concluída, pois mais barcos de pesca se encontram em construção e outras indústrias inerentes à pesca estão sendo programadas para oportunamente se solicitarem os respectivos alvarás.

/ 27 / Seria injustiça e ingratidão imperdoáveis omitir as ajudas financeiras dispensadas pelo Estado à Indústria de Pesca. Quer primeiramente pela concessão de avales da C. R. C. B. a empréstimos feitos através da C. G. D. C. e P., quer depois através do Fundo de Renovação e Apetrechamento da Indústria da Pesca, criação feliz dos Ministérios da Economia e Finanças, ajudas importantes e preciosas. Há ainda que referir a acção dos Organismos Corporativos das Pescas, orientados eficientemente pelo Ex.mo Delegado do Governo, que tem sido, também, esteio financeiro apreciável para os respectivos industriais, aos quais esses organismos têm fornecido, dentro das suas possibilidades materiais, crédito a curto ou a longo prazos, muito de apreciar e agradecer.

E foi com o aproveitamento destas facilidades oficiais que a E P A, utilizando também os recursos próprios obtidos à custa da poupança de dividendos, e usando o crédito bancário, cresceu e se desenvolveu até adquirir no meio pesqueiro do País uma posição que, embora modesta, traduz claramente o desejo e o propósito de corresponder aos desígnios governamentais de bem servir a Nação, deveres que os sócios da EPA não podem nem querem esquecer.

E tem sido devido a estas ajudas do Estado, através da Organização Corporativa da Pesca e na obediência a programas oficialmente elaborados e definidos, que se foi criando, ao longo da costa portuguesa, uma frota de pesca a todos os títulos notável, prestigiante para o nosso País e que representa um valor importantíssimo para a economia portuguesa.

Sem qualquer propósito de fascinar quem quer que seja, mas unicamente para salientar inquebrantável fé no futuro da indústria de pesca e demonstrar forte vontade de colaborar, embora modestamente, no valioso esforço do Governo da Nação para a valorização económica do País e contribuir para um melhor nível de vida para todos os portugueses, posso informar que a Empresa de Pesca de Aveiro está já despendendo na construção de dois arrastões para a pesca do bacalhau a quantia de noventa mil contos, tendo gasto nas instalações hoje inauguradas cerca de vinte mil contos, o que perfaz o total de cento e dez mil contos. Recebeu do Estado, através do Fundo de Renovação e Apetrechamento da Indústria de Pesca, como empréstimo para a construção dos dois referidos arrastões, a quantia de trinta e três mil contos e mais do Ministério da Economia, por intermédio / 28 / da C.R.C.B. e do Grémio dos Armadores de Navios da Pesca do Bacalhau, a quantia de dois mil e quinhentos contos como prémio de construção de um dos arrastões. São investimentos importantes e muito arriscados, pois trata-se de uma indústria que joga bastante com o factor sorte, porquanto o produto que se procura não se compra quando se quer, nem pelo preço que possa convir, nem se obtém nas quantidades que se pretendem. É produto que se arranca ao mar, nem sempre se encontra e que o mar muitas vezes não está disposto a deixar levar, pois é peixe criado nas suas águas. E assim, quantas vezes, por mais esforços que a tripulação de um barco possa desenvolver, diligentemente comandada por capitão competente e ávido de encher os porões do seu barco com o precioso peixe, não tem que regressar ao porto de armamento cheia de dor e de tristeza, com o navio quase vazio, e a certeza de uma Campanha nada compensadora que acarretará ao armador fortes prejuízos. São investimentos muito arriscados, mas absolutamente necessários, porque deles depende um dos principais elementos da alimentação da população do País. Pela sua grande utilidade para a Nação, estes investimentos não podem passar desapercebidos do Governo e merecem que este lhes faculte meios necessários para que possam obter justa compensação para o capital neles empregado.

É por isso que a nós, Ex.mos Snrs. Subsecretário de Estado, Governador Civil e Delegado do Governo junto dos Organismos das Pescas, grande satisfação nos causa, neste anseio de bem servir, a grata presença de V. Ex.as na inauguração oficial da nossa fábrica de conservas de peixe e dos quatro túneis de secagem artificial de bacalhau, que é garantia de um apoio moral e firme à organização da E P A.

/ 29 / A fábrica de conservas, preparada para dar trabalho a trezentas operárias e alguns operários e cujo labor deve atingir alta produção de conservas de peixe, constituirá mais um factor de desenvolvimento do porto de Aveiro, por possibilitar maior consumo de produtos da pesca trazidos à lota.

Os quatro túneis de secagem de bacalhau, únicos do seu sistema instalados em Portugal, vão ser auxiliares preciosos da indústria do bacalhau, por darem a garantia de continuidade à secagem, que deixa, assim, de depender do estado do tempo. A sua produção será de trinta toneladas de bacalhau seco em vinte e quatro horas, o que representa novecentas toneladas mensais. É pensamento nosso duplicar esta instalação de forma a poder ficar-se com a garantia da preparação de todo o bacalhau da nossa produção actual e futura e com a possibilidade de fornecer regularmente o mercado consumidor em quantidades certas e épocas determinadas.

É-me grato esclarecer e faço-o com profunda satisfação, que grande parte do material aplicado nas instalações fabris hoje inauguradas, foi construído nas próprias oficinas na EPA, assim como a respectiva montagem se deve, também, a pessoal nosso que, com tais trabalhos, amplamente demonstrou a sua elevada competência técnica e profissional, embora a direcção pertencesse a engenheiros especializados.

Além do que se encontra realizado e sinteticamente se foca no quadro que ali defronte V. Ex.as podem examinar, a EPA traz em preparação uma instalação de pesca na província ultramarina de Angola, cujo alvará já lhe foi concedido, e participa, como fundadora, num grupo português que tem em estudo a criação de outro complexo industrial de pesca no porto da Praia, em Cabo Verde.

/ 30 / Percorridos estes quarenta anos através de muitos trabalhos, de muitos desgostos mas também, por vezes, de muita alegria, e tendo atingido a EPA uma meta que os seus sócios, conscientemente, reconhecem já notável, é justo recordar neste dia, com muita saudade de reconhecimento, o nome dos sócios fundadores que foram ficando no caminho: Jeremias Vicente Ferreira, Albino Pinto de Miranda, Lívio da Silva Salgueiro, Augusto Fernandes Bagão, Dr. Américo Teixeira, António da Silva Salgueiro, Narciso Pinto Loureiro, Francisco Pereira Lopes, Jeremias Tomaz Cardoso e David Nunes. Dos vivos não posso deixar de mencionar com muito prazer e sem qualquer melindre para os restantes, a figura prestigiante do Sr. Alfredo Esteves, que durante os quarenta anos da existência da EPA tem dado ininterruptamente o seu completo apoio moral e material a todas as iniciativas tomadas e que ainda hoje, apesar dos seus quase noventa anos, as acompanha e anima com verdadeiro entusiasmo.

Também nesta hora de muita felicidade para a EPA, não poderia deixar sem uma palavra de agradecimento muito reconhecido a todos os nossos colaboradores, desde os que ocupam os mais altos postos aos de mais humilde posição. A todos eu desejo apresentar, por mim e pelos membros dos Conselhos de Gerência e Fiscal, e creio bem que interpreto também o sentir de todos os associados, as melhores saudações e os mais sinceros agradecimentos.

Eis, minhas Senhoras e meus Senhores, referida em largos traços a história da EPA e a razão que nos levou a solicitar a presença tão agradável e honrosa de V. Ex.as, incómodo que nos permitimos esperar nos seja relevado, com a aceitação dos nossos mais sinceros e rendidos agradecimentos por tão grande distinção.

E renovo especiais saudações aos Ex.mos Senhores Subsecretário de Estado da Indústria, Vigário Geral, Governador Civil de Aveiro e Delegado do Governo junto dos Organismos das Pescas, que com a sua presença tanto brilho vieram dar a este festivo almoço, onde, irmanados pelo mesmo ideal de boa e útil colaboração, se encontram sentados à mesma mesa patrões, empregados e operários da Empresa de Pesca de Aveiro.

/ 31 / Permitam-me ainda minhas Senhoras e meus Senhores, por último e como prova de muita admiração e de muita consideração, saudar a Imprensa aqui representada pelos quatro semanários de Aveiro e Ílhavo, e pelos diários de Lisboa e Porto.

Sempre com boa disposição, estes homens da imprensa não olham a sacrifícios de toda a ordem, e até muitas vezes da sua própria vida, para poderem fazer a reportagem de todos os factos da vida nacional, satisfazendo o anseio do público, sempre ávido de notícias.

E é ainda à Imprensa, que, nestes momentos críticos, e posso dizer históricos para o nosso País, em referência às nossas Províncias Ultramarinas, todos nós portugueses devemos ser gratos pela forma persistente e elevada como tem colaborado com o Governo da Nação, na defesa do nosso Património Ultramarino. Aos representantes da Imprensa aqui presentes um grande abraço de agradecimento pela sua vinda a este festivo almoço.

No final do seu discurso. constantemente interrompido por calorosos aplausos, o Sr. Egas Salgueiro foi abraçado comovidamente pelo Sr. Alfredo Esteves, seu companheiro desde início à frente dos destinos da EPA. o que motivou nova e vibrante aclamação.
 

 

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