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falando sobre cinema

por carlos jerónimo

 

AO relermos há dias certo livro consagrado aos problemas cinematográficos, deparou-se-nos um pequeno artigo de Frank Capra, no qual nos chamou particularmente a atenção a seguinte passagem:

«Um bom filme pode «fazer» uma estrela, mas uma estrela não pode nunca salvar um filme mau. Na minha opinião, a estrela é a consequência natural dos esforços combinados de todas as células dos estúdios, que contribuem para conseguir um bom filme.

Se o assunto, a realização, a produção e os mil outros factores que entram na fabricação do filme são bons, o ou a principal intérprete tem as maiores possibilidades de atingir a celebridade, desde que, naturalmente, ela ou ele seja a personagem do seu papel.»

Esta opinião do conceituado realizador americano trouxe-nos à ideia a permanente actualidade do problema do vedetismo no cinema, com todo o seu rosário de grandes vedetas que, realmente, nunca conseguem acrescentar a nenhum filme mais do que um aumento mais ou menos substancial do número de espectadores.

O culto do vedetismo pelos espectadores de cinema sugere imediatamente um desconhecimento quase total da técnica cinematográfica.

Dirigente vários anos do C. C. A., pude verificar a improficuidade dos esforços feitos para elevar o nível cinematográfico dos seus sócios. Só uma minoria muito reduzida acompanhou a nossa actividade nesse capítulo, criando a pouco e pouco uma mentalidade de cineclubista, que lhes permite uma apreciação conhecedora dos filmes que têm oportunidade de ver.

Causa-nos pena ouvir tantas vezes, e quantas até em pessoas com certas responsabilidades culturais, esta afirmação: «O filme X deve ser bom, porque é com o actor Y e ele só tem filmes bons».

Isto revela um alheamento incompreensível do conhecimento dos mais / 9 / elementares rudimentos da arte cinematográfica. Um filme nunca pode ser bom ou mau apenas porque nele toma parte este ou aquele artista. O filme é feito com esse actor e não por ele.

Pela teoria desses espectadores, o mérito da «Gioconda», por exemplo, não deveria pertencer a Da Vinci, mas sim ao seu modelo. A expressão, aquele sorriso indecifrável que tantos adjectivos tem merecido, pertence a este e o pintor ter-se-ia limitado unicamente a fixá-lo. Ora toda a gente sabe que esta ideia seria um disparate.

Porque não havemos, pois, de reconhecer também que o mérito do actor no cinema é relativo, visto que se limita a expressar para a câmara a ideia do realizador e que terá de sequência tantas vezes um plano até que o consiga? Porque não havemos de dispensar mais atenção ao nome que discretamente aparece no ecrã e que é, afinal, o do responsável por tudo que de mal ou de bom vamos ver? Teria o «Ladrões de Bicicletas» obtido a repercussão que alcançou devido a ter sido desempenhado por artistas que aí deram o seu primeiro passo perante as câmaras ou porque foi realizado por De Sicca? Alcançaria o mesmo sucesso extraordinário o «Psico», de Hitchcock, se não fosse dirigido por este realizador? Ou suscitaria a mesma celeuma «A Morte de um Ciclista» se em vez de Juan António Bardem tivesse sido seu realizador um desses directores inconcebíveis que pululam no cinema português?

Julgamos que a resposta é dada logo que se põe a pergunta. Mas, apesar disso, este problema continua a ser, no capítulo de educação cinematográfica do nosso público, um dos mais instantes e merecedores de atenção.

Esperamos que os Cineclubes possam obter a solução deste problema, se forem devidamente acarinhados e definitivamente compreendida a sua missão.

 

 
 

Uma cena do filme «Ladrões de Bicicletas», de Vittorio de Sicca, com a descoberta de uma nova fonte dramática: a perda do instrumento de trabalho.

 
 
 

 

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