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Eduardo Cerqueira, Do que em Aveiro há, 1955, 9 pp.

Do que em Aveiro há *

Marcaram-me uma tarefa: dizer do que em Aveiro há... E porque não me circunscrevem um âmbito e me deixam livre latitude para abordar os aspectos que, na minha realíssima gana, mais me dêem aprazimento, ou mais convenham às minhas limitações de erudição histórica ou de outros cabedais do saber, começarei pelo que se me afigura para este ensejo o lógico princípio.

Em Aveiro há...

... em Aveiro há um sentimento de viva simpatia e funda gratidão por Viseu.

Aveiro é lá em baixo, na terra rasa e branda de ao pé do mar. Viseu fica cá pelo alto, cá pelos cimos maciços e majestosos, no centro geográfico e administrativo da região onde brota o Vouga. O rio corre infatigavelmente a levar-nos a vossa água, a linfa da vossa terra – dador eterno do sangue das veias dos vossos agros, que se empobrecem em nosso proveito. Algures desponta singelo como uma fonte; e depois é arroio, e adiante regata, e por múltiplos contributos engrossa e dilata-se; serpeia, saltita pressuroso, vence obstáculos com afã e alvoroço e, como se uma bússola tirânica lhe impusesse o caminho, busca, inalteravelmente, a nossa Ria.

É uma prova de amor perpétuo e um consórcio indissolúvel cada dia renovado.

Aqui há uns quantos milhares de anos, estas boas terras de Viseu eram já velhas – e as que circundam Aveiro ainda não existiam. O rio carreou materiais sem descanso, dia após dia, ano atrás de ano, e por séculos sem conta. E, assim, esta terra generosa ajudou a formar a minha, numa oferenda altruísta e constante que data das idades geológicas e perdurará por incalculáveis tempos.

E o rio, que não cessa de correr e só à beira da nossa porta abranda a marcha para chegar, manso, numa carícia; o Vouga que, num ambiente de geórgica, se derrama amorosamente na laguna – e lhe adoça o marinho travo salgado – abriu um trilho, rasgou uma senda e imprimiu um sentido permanente no fluir para os nossos plainos, que dos elementos físicos se comunicou às predilecções humanas.

Atrás do rio seguiu a gente com o seu abraço fraterno e as reiteradas demonstrações de afectuosa solidariedade.

A ria, ainda quando não efectiva, é um porto em promessa e em potência. Quando, algum dia, pensámos em transpor à realidade a ansiada aspiração que as condições naturais magníficas impunham ao nosso dever cívico, de Viseu nos chegou, rasgado, o apoio e o estímulo, a voz que fortalece o coro, a acha grande para a / 4 / fogueira dos nossos entusiasmos. Caminho comum, o do Vouga e o das inclinações dos homens desta terra amiga às nossas águas e ao nosso mar conduz.

E aqui lembro, especialmente, duas figuras que conheci e tão bem sentiram e interpretaram o nosso problema em relação às Beiras: o gentil espírito do Dr. José Júlio César e o eng. Tristão Ferreira de Almeida, que ainda numa publicação póstuma calorosamente o advogou.

O oceano e Aveiro retomaram já um convívio mais assíduo e estreito, mercê dos eficientes melhoramentos da barra; reataram as relações que no século de quinhentos tornaram a vila medieval num burgo comercial-marítimo florescente. A água do mar é o fecundo elemento da nossa prosperidade; o vivificante e o tónico desse complexo organismo geo-humano que forma o «hinterland» da Ria. Chamei-lhe algures soro fisiológico e vejo-a já, porque desembaraçadamente circula a demonstrar-se como tal no surto de progresso que Aveiro vem experimentando.

E agora, ainda que imprecisos, chegam-nos rumores de que, de onde talvez legitimamente se pudesse esperar resistência à expansão portuária aveirense, antes esta se preconiza e expressamente defende.

De Leixões, que na sua grandeza não pode arrecear-se da concorrência, numa fase de pletora, com um acréscimo de tráfego que atinge o dobro do previsto, e no convencimento de que os melhoramentos projectados em algumas poucas décadas terão atingido nova saturação, se aponta a necessidade de abreviar à construção do porto de comércio de Aveiro e, sobrelevando ainda a este, por títulos de maior premência, a do nosso porto industrial.

Começa a antever-se a efectivação do anseio secular; e, nesse dia, o que de vós recebemos de benevolência – no exacto sentido etimológico de bem desejar – reverterá, a par com o nosso, no vosso proveito. Será essa a retribuição material às benemerências que da vossa terra e da vossa gente, nas horas da desdita ou da honrada modéstia, nós lográmos.

E em Aveiro há...

...como dizia um memorialista do século XVII, há, de lés a lés, uma fisionomia «desabafada e alegre».

Os canais da Ria cortam-na, e abrem-na em mais folgada largueza, imprimem-lhe específico carácter, espelham o casario e as embarcações típicas, reverberam os lumes nocturnos, o prateado dos luares, os longes do próprio céu e das estrelas.

Dois atributos a caracterizam: a luz e a água – a água que se exalça numa poalha húmida, para irisar a luz e a desdobrar no cromatismo de que é a síntese. O mais é a obra humana, precária e efémera, ainda quando relevante. Aveiro, na história do seu evoluir, oferece aos homens uma concludente lição de humildade. Com provecta existência milenária, e um passado em que conheceu esplendores de riqueza; centro portuário de intenso movimento; cercada de sólidas muralhas, destinadas a afrontar os tempos; – quase tudo o que braços humanos ergueram viu ruir, e desfazer-se e desaparecer. Persistiu o perfume místico de uma Princesa – que preferiu ser / 5 / Santa, e desmantelaram-se os espessos muros, com que cingiu a sua vila de então D. Pedro, o ínclito Infante. Guardou-se, memória do humanista Aires Barbosa, renovador da cultura de seiscentos, e caiu no olvido o próprio local do templo onde foi sepultado. Conservou-se mais fiel lembrança de quem praticou as obras e exerceu as acções, do que do concreto resultado das inteligências empreendedoras. As manifestações do espírito subsistem para além das realizações materiais mas, imediata ou remotamente, delas dimana o impulso e a força criadora que das ruínas reerguem as novas obras e os novos fautores de progresso.

Aveiro ilustra nas vicissitudes do seu passado, ao mesmo tempo, a contingência das possibilidades humanas e o seu poder construtivo e de regeneração. A Natureza, pródiga uma vez, negou-lhe depois, impiedosa, os seus favores, e arrastou-a ao calamitoso depauperamento. Um homem, esclarecido, audacioso e pertinaz forçou a Natureza. E aí onde fora uma urbe marcante do século XVI, reduzida a cerca de um quarto da população em duzentos anos – lutou, congregou esforços, chamou a técnica em seu auxílio, interessou nos seus problemas vitais a governança pública. Já o capitão-mor João de Sousa Ribeiro, aveirense benemérito e devotado, empreende a reabertura da barra, à sua própria custa. Mas os revezes sucedem-se, porque as forças naturais são cegas e indiferentes às conveniências humanas, e são obstinadas. Um homem providencial, que na grata lembrança dos aveirenses mereceria, a meu ver, mais desvelada atenção, e eu recordo como dos maiores benfeitores da minha terra, sempre que vem a talho de foice, – Luís Gomes de Carvalho fixa, por fim, a barra, em princípios do século XIX.

E o que em Aveiro há, ou antes, o que Aveiro é – passando por agora em claro alguns vestígios mais salientes dos tempos pretéritos – provem, na generalidade, dessa obra ressurgidora.

Voltaram a brilhar os sol os brancos cristais do sal marinho, nas salinas quase esterilizadas pela água salobra; as culturas das terras baixas retomaram as produções normais; o estado sanitário das populações experimentou melhoria tão sensível que, em poucos anos, o caridoso dispêndio do prelado com socorros aos doentes pobres se reduziu consideravelmente. Renasceram e recrudesceram as actividades; surgiram na edilidade os primeiros eficientes obreiros do desenvolvimento citadino; lançaram-se, tímidas mas ininterruptas, as iniciativas.

Um dia, estabeleceu-se um imposto de real em cada quartilho de jeropiga e instituiu-se com a nova receita a iluminação pública. São de início uns poucos candeeiros de azeite, na porta da Ribeira, escura e espessa como uma catacumba; mas, dado esse primeiro passo – e, porque talvez o consumo de jeropiga, aqui há pouco mais de uma centúria, fosse avultado – tempos depois quase toda a cidade dispunha de umas luminárias bruxuleantes durante a noite. Melhora-se o cais da cidade, calcetam-se as ruas, abrem-se estradas, constroem-se pontes, erguem-se edifícios... José Estêvão, mais convicto das vantagens dos caminhos de ferro do que a grande maioria dos seus contemporâneos, bate-se denodamente por que a linha do norte passe pela sua terra.
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Não era apenas –
esse pouco! – um prodigioso orador, o heróico soldado da Liberdade, mas uma argutíssima inteligência de penetrante visão, um impoluto e isento homem de princípios – e um aveirense fundamente dedicado ao seu torrão natal. Conta-se que ofereceram 100 contos da época – alguns milhares de hoje, porventura – ao paladino desse melhoramento, para que calasse o seu aveirismo, e abandonasse a causa que espontaneamente abraçara.

Para um idealista da sua têmpera não há dinheiro que valha urna causa justa, ou arrefeça uma acendrada paixão.

O caminho de ferro tornou-se mais um factor de fomento económico de uma localidade, mercê da clarividência, do íntegro desinteresse e do bairrismo férvido e fecundo dessa egrégia figura tutelar da minha terra.

Pouco a pouco, com boa-vontade perseverante, mesuradas ambições e consciência do exequível, chegou-se à cidade de hoje – já com seus jeitos e aspectos de cidade – e cimenta-se a do futuro; para fazer face a prenunciadas exigências de maior tomo. Mostra um ar lavado e fresco, ordenado e atraente de terra que tem quem a cuide e zele. Moderniza-se e embeleza-se; com novos empreendimentos, enriquece e expande-se; acelera os ritmos de desenvolvimento e a vida intensifica-se.

A indústria, que o Marquês de Pombal pretendeu fixar, quando, há dois séculos – a completar dentro de quatro anos – a erigiu em cidade, redundou em malogro. Aí a encontramos rejuvenescida e de voos amplos, a desferirem-se para mais dilatados horizontes. A par da cerâmica decorativa, doméstica e de construção, cuja tradição secular quase se extinguira, e hoje toma vulto inatingido, contam-se a lixa, a moagem, a carpintaria mecânica, a metalurgia a celulose – com proporções pertencentes já ao estalão que ultrapassa a corrente da mediania – e outras menores.

A pesca longínqua, exercida desde a descoberta da «Terra dos Bacalhaus» lá pela segunda metade do século XV, deperecera. Restabeleceu-se com sobrepujante possança, a termos de colocar o porto de Aveiro, com duas dúzias de modernas unidades, no segundo posto das frotas bacalhoeiras nacionais, e, em globo, como o terceiro do país no que concerne ao geral das pescas.

E, no domínio da etnografia, em Aveiro há fartos motivos de interesse: barcos, com colo de cisne, das fainas do moliço; sóbrios mercantéis, bateiras, caçadeiras – cada qual com uma função diferenciada e adequada estrutura; redes, alfaias e sistemas de pesca variados; usanças peculiares; peças de vestuário como o gabão; manifestações da arte popular, tão expressivas como os painéis ingénuos e policromos dos moliceiros ;airosos. Acrescentem-se as afamadas procissões – em nenhures do país excedidas em 'pompa e compostura – as festas das «Entregas dos Ramos», na quadra natalícia, manifestações religiosas, mescladas de laivos profanos, únicas no país.

Inclua-se neste capítulo a culinária. Apontem-se as caldeiradas, de firmado renome. Nada desmerecem das que deliciaram Fialho de Almeida – «as caldeiradas patrícias, inverosimilmente celestes dos Gamelas de Aveiro». Um conhecido propugnador da genuína / 7 / cozinha portuguesa citou-me, certo dia, nove receitas diferentes da festejada iguaria dos pescadores – a primeira condimentada com gengibre e a última utilizando, como sucedâneo do clássico «pó de enguia», nada menos do que sementes do girassol. E o experimentado gastrónomo não se decidira nas suas preferências. Ajuntem-se as espetadas de mexilhão, as enguias de escabeche, o carneiro assado na caçoila de barro preto e, a todos excedendo em aura e projecção, os celebrados «ovos-moles» das nossas legendas de propaganda. Li uma vez que, numa mesa onde se sentavam algumas das mais cintilantes figuras das letras nacionais e dos mais exigentes e requintados «gourmets» da Lisboa dos fins do século passado, com vinhos dignos do Olimpo, «os ovos moles de Aveiro eram servidos de joelhos, com reverências ritualistas». Consagrava-se, assim, entre as mais raras doçarias, a especialidade aveirense – «doce muito célebre, mesmo lá fora... uma delícia», como afirmava o Dâmaso, de «Os Maias », com água na boca.

E neste relance, tão fugidio e saltitante, mudo já de parágrafo.

Confessarei que em Aveiro escasseia a monumentalidade e a opulência no aspecto arquitectónico e nas artes plásticas. Assim mesmo não poderá deixar de considerar-se um centro artístico de relevo. O sr. prof. Dr. Reinaldo dos Santos não hesita em qualificá-la como um dos focos de maior significado do barroco nacional do século XVII, e um conceituado especialista americano, o professor da Universidade da Pensilvânia Robert Smith classificou-a como um dos núcleos capitais na arte da talha dourada, dessa centúria e da imediata. As igrejas de Jesus e das Carmelitas, nesse aspecto, cotam-se como espécimes dos mais belos e valiosos do país.

Com primores de acabamento, o tecto da capela-mor do primeiro desses templos, na justa expressão do ilustre aveirense sr. Dr. Alberto Souto, «é uma autêntica maravilha, parecendo aberto a buril numa pepita de oiro».

Neste sector, atrai mais especialmente as atenções o Museu Regional, de que a igreja de Jesus constitui um anexo, e ali, entre todas, duas obras primas – o retrato de Santa Joana e o seu túmulo de mármores incrustados, considerado uma verdadeira preciosidade, única no mundo.

Predomina a arte conventual, mas, quer na pintura e escultura, quer em tecidos e paramentos, muito há que apreciar e admirar, com real interesse estético, religioso e histórico.

E há...

...apesar de tudo há um cruzeiro como o de S. Domingos, gótico-manuelino, que no autorizado conceito do Doutor Virgílio Correia figura como «o melhor de Portugal no seu género e estilo»; e alguns templos, por uma outra particularidade, dignos de atenta observação, como a capela do Senhor das Barrocas, «transcrição neo-manuelina, muito elegante, dos baptistérios de Pisa e Florença», segundo a julgou Dieulafoy; a igreja da Misericórdia, que ostenta «o mais formoso e rico portal dos templos congéneres do norte do país», como acentua o citado crítico de arte aveirense...

E há, rodando subitamente este cosmorama de cores baças, um umbroso parque, esmeradamente tratado, desafogados bairros / 8 / modernos, edificações vultuosas e gente cordata e afável. E há... uma população que tende para as duas dezenas de milhares, e os trechos lagunares sedutores, e, de certeza, uma latitude, e uma longitude, e, na prática, nenhuma altitude...

E... ah!... O tempo de ordenança já deve estar esgotado.

Aveiro, mesmo na sua modéstia, não cabe nestas apressadas e insulsas palavras.

Na verdade, o que em Aveiro há «é mais de ver que de contar». E eu, à maneira predilecta dos músicos italianos de setecentos, devo rematar em forma de da-capo, e adoptar o andamento presto.

Viseu tem um lugar eleito dentro do nosso coração de aveirenses. Lembro-me que há uma dúzia de anos, andando por cá passageiramente em serviços profissionais, uma manhã, tomava o comboio para ir incorporar-me numa romagem à jazida de um aveirense insigne, que foi o mais vigoroso panfletário português deste século – o fundibulário justiceiro que se chamou Homem Cristo. Alguém, que evoco comovidamente, teve a gentil lembrança de me mandar à estação um ramo de flores – flores das árvores que esse ferrabrás temível e complexo, rude e, simultaneamente, com os mais imprevistos refinamentos, plantara na parada do quartel para depor, votivamente, na sua campa.

Transportei-as, emocionado, como uma homenagem de Viseu ao vulto aveirense de maior projecção no meu tempo. Mais do que um facto circunstancial, ficou-me gravado o gesto singelo desse momento, como uma manifestação simbólica de ligação e simpatia, estreitas e firmes.

E nós não disporemos de flores com que possamos tão significativamente associar-nos às vossas manifestações cívicas de dor e alegria. Mas em Aveiro há... – asseguro-vos que há! – em inteira reciprocidade, francos braços acolhedores, reconhecido afecto, peitos alegre e cordialmente abertos para a boa gente de Viseu.

Eduardo Cerqueira

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EDIÇÃO DO ROTARY CLUBE DE AVEIRO

Eduardo Cerqueira, Do que em Aveiro há... Excerto da palestra proferida no Rotary Clube de Viseu em 5de Junho de 1955. (Separata do semanário aveirense "Litoral", AVEIRO - 1965

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11-05-2019