AVENIDAS, RUAS, PRAÇAS E LOCAIS DE AVEIRO

A Rua de Sá

Quinta-feira, 10 de Dezembro de 1998 – pág. 15 Amaro Neves

Não há memória escrita que sugira a organização desta rua. Não há. Mas, certamente, poucas décadas depois do escambo que a toda poderosa Mumadona Dias fez em 959, em que são citadas as propriedades de Alquerubim e as terras in Alavarium com suas salinas, talvez já esta velha rua estivesse minimamente definida como caminho principal de ligação entre Aveiro e Esgueira. E, assim, poder-se-iam encontrar nas suas bermas, sinuosas e desalinhadas, alguns dos casebres do tempo que serviam de refúgio aos foreiros e rendeiros, aos marnotos e aos pescadores, desde cedo implantados à beira do manto infindável das águas mornas da Ria.

Nada nos garante que fosse desta maneira, mas será difícil imaginar algo muito longe disto, sem se falsear o entendimento histórico.

Então, Sá era lugar altaneiro na configuração espacial litorânea donde se via, longe, bem longe, tudo quanto para norte e para poente mexesse à tona de água, até à garganta da confluência com o mar salgado, entre os areais de Ovar e os do Alqueidão. Em seu redor, foram-se domesticando as marés e também os pauis, gradualmente, convertidos em terra fértil do amanho agrícola ou "tabuleiros” geradores de minúsculos cristais, brancos de pureza e multiformes de esplendor estético, cristalinos na essência, valiosos no peso e pela qualidade.

À fama de tais riquezas apelaram os grandes do tempo, oferecendo privilégios. Em resposta, se movimentaram para aqui e se foram fixando os homens e as mulheres que contribuíram também, a par com os de Aveiro, para darem os frutos de suas salinas para os alicerces da Sé de Coimbra, não fossem o bispo e seus clérigos julgá-los menos generosos com a obra de Deus.

Com os tempos, os habitantes deste lugar ganharam a confiança do seu meio natural envolvente, pescando mais longe e levando mais distante o produto dos seus suores, em barcos cada vez mais seguros, contribuindo pelas suas múltiplas tarefas para crescer o seu lugar e a sua rua. E esta se foi convertendo em local obrigatório de passagem, dando como referência a ermida da Senhora de Sá, erguida pelo final do século XII ou nos primeiros anos de Duzentos. Então, movidos de um espírito de solidariedade cristã, mareantes e pescadores reuniram-se em torno de Nossa Senhora, cujo culto se expandia por todo o Ocidente, para fundarem uma confraria que a tivesse por padroeira e protectora nas horas de maior aflição dos seus familiares como também nas suas diversas e longínquas actividades. E, na hora do regresso do mar tenebroso, os mareantes e pescadores acorriam a agradecer à sua Senhora de Sá, convertida em Senhora da Alegria.

À alegria do regresso se juntavam vizinhos e amigos, seguindo-se os actos religiosos e as festas familiares. Com a fama e prosperidade de tais “irmãos” foram crescendo os bens e os privilégios da velha confraria, favorecida por fidalgos e patrocinada também pelo infante Regente D. Pedro, senhor de Aveiro.

Entretanto, enriquecera a sua capela, reformada e ornamentada, enquanto a instituição, pelo empenhamento dos seus membros, se viu dotada de hospital próprio, este com sede na Vera-Cruz.

No final de Quinhentos, alargou-se o espaço religioso com um belo cruzeiro, forrado com preciosas relíquias azulejares de influência sevilhana, retiradas certamente do interior da capela-mãe. E ali ficou, durante centenas de anos, no altinho mais alto do cabeço da ermida, dominando o casario da rua com seu manto de história e de convites à vida cristã.

A estrada régia, reverentemente, curvou-se àquele conjunto urbano de carácter religioso, no respeito pela obra de tantos e tantos aveirenses, moldando-se nos terrenos penhasquentos das Barrocas.

No final da década de 1980, porém, com promessas tentadoras de urbanidade que este conjunto histórico-artístico dispensava, cercearam-lhe os encantos que a história e a vida local lhe conferiram por dezenas e dezenas de gerações. Comprimiram-lhe o espaço em redor, entaipando-o com cimento armado. Reduziram-lhe a escala urbana, sem um mínimo de contemplação por este cantinho poético. Alegando conforto, rasgaram-no com largas estradas carregadas de tráfego.

E a Senhora de Sá, que durante séculos foi para tantos e tantos a Senhora da Alegria, está cada vez mais esquecida, agora que virou a tristeza de tal se ver. Diferente a verá certamente a Marta Duarte, ali vivendo, com a sua juventude e bom senso (ela que fez esta rubrica, com entusiasmo, por várias semanas).

A Rua, essa está cada vez mais descaracterizada. Abrindo logo após o quartel, ficou-lhe à esquerda, por acaso, uma casa arte nova, recuperada há poucos anos. Mais acima e do mesmo lado são ainda visíveis painéis de azulejo que evocam a primeira viagem de avião ao Brasil, ali mandados colocar por gente que às terras de Santa Cruz ficou a dever a sorte da vida. Do casario antigo pouco resta, ainda que subsistam apontamentos da viragem do século XX, quando as regras do urbanismo ganharam força no espaço aveirense.

Mas, no remate da rua, antes do cruzamento e à vista da capela de Sá, no último verão, desapareceu aquela que era tida como a maior casa de carácter arte nova, em todo o espaço concelhio. Não se pode dizer que era particularmente bela, mas era o que era e valia como tal…

É assim nesta terra, também assim é nesta rua. Se se não sabe ao certo quando terá começado, também se não sabe o que a memória poderá conservar. Destino das ruas estreitas, meus amigos, que não têm espaço em cidade que teima em ser grande por formas menos próprias do seu carácter…

Que mal nos fez a rua e a Senhora de Sá?

 

Capela e cruzeiro - aspecto geral em 24-4-2017. Clicar na imagem para ampliar.

 

 

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