Não há
memória escrita que sugira a organização desta rua. Não há. Mas,
certamente, poucas décadas depois do escambo que a toda poderosa
Mumadona Dias fez em 959, em que são citadas as propriedades de
Alquerubim e as terras in Alavarium com suas salinas, talvez já
esta velha rua estivesse minimamente definida como caminho principal de
ligação entre Aveiro e Esgueira. E, assim, poder-se-iam encontrar nas
suas bermas, sinuosas e desalinhadas, alguns dos casebres do tempo que
serviam de refúgio aos foreiros e rendeiros, aos marnotos e aos
pescadores, desde cedo implantados à beira do manto infindável das águas
mornas da Ria.
Nada nos
garante que fosse desta maneira, mas será difícil imaginar algo muito
longe disto, sem se falsear o entendimento histórico.
Então, Sá
era lugar altaneiro na configuração espacial litorânea donde se via,
longe, bem longe, tudo quanto para norte e para poente mexesse à tona de
água, até à garganta da confluência com o mar salgado, entre os areais
de Ovar e os do Alqueidão. Em seu redor, foram-se domesticando as marés
e também os pauis, gradualmente, convertidos em terra fértil do amanho
agrícola ou "tabuleiros” geradores de minúsculos cristais, brancos de
pureza e multiformes de esplendor estético, cristalinos na essência,
valiosos no peso e pela qualidade.
À fama de
tais riquezas apelaram os grandes do tempo, oferecendo privilégios. Em
resposta, se movimentaram para aqui e se foram fixando os homens e as
mulheres que contribuíram também, a par com os de Aveiro, para darem os
frutos de suas salinas para os alicerces da Sé de Coimbra, não fossem o
bispo e seus clérigos julgá-los menos generosos com a obra de Deus.
Com os
tempos, os habitantes deste lugar ganharam a confiança do seu meio
natural envolvente, pescando mais longe e levando mais distante o
produto dos seus suores, em barcos cada vez mais seguros, contribuindo
pelas suas múltiplas tarefas para crescer o seu lugar e a sua rua. E
esta se foi convertendo em local obrigatório de passagem, dando como
referência a ermida da Senhora de Sá, erguida pelo final do século XII
ou nos primeiros anos de Duzentos. Então, movidos de um espírito de
solidariedade cristã, mareantes e pescadores reuniram-se em torno de
Nossa Senhora, cujo culto se expandia por todo o Ocidente, para
fundarem uma confraria que a tivesse por padroeira e protectora nas
horas de maior aflição dos seus familiares como também nas suas diversas
e longínquas actividades. E, na hora do regresso do mar tenebroso, os
mareantes e pescadores acorriam a agradecer à sua Senhora de Sá,
convertida em Senhora da Alegria.
À alegria
do regresso se juntavam vizinhos e amigos, seguindo-se os actos
religiosos e as festas familiares. Com a fama e prosperidade de tais
“irmãos” foram crescendo os bens e os privilégios da velha confraria,
favorecida por fidalgos e patrocinada também pelo infante Regente D.
Pedro, senhor de Aveiro.
Entretanto, enriquecera a sua capela, reformada e ornamentada, enquanto
a instituição, pelo empenhamento dos seus membros, se viu dotada de
hospital próprio, este com sede na Vera-Cruz.
No final
de Quinhentos, alargou-se o espaço religioso com um belo cruzeiro,
forrado com preciosas relíquias azulejares de influência sevilhana,
retiradas certamente do interior da capela-mãe. E ali ficou, durante
centenas de anos, no altinho mais alto do cabeço da ermida, dominando o
casario da rua com seu manto de história e de convites à vida cristã.
A estrada
régia, reverentemente, curvou-se àquele conjunto urbano de carácter
religioso, no respeito pela obra de tantos e tantos aveirenses,
moldando-se nos terrenos penhasquentos das Barrocas.
No final
da década de 1980, porém, com promessas tentadoras de urbanidade que
este conjunto histórico-artístico dispensava, cercearam-lhe os encantos
que a história e a vida local lhe conferiram por dezenas e dezenas de
gerações. Comprimiram-lhe o espaço em redor, entaipando-o com cimento
armado. Reduziram-lhe a escala urbana, sem um mínimo de contemplação por
este cantinho poético. Alegando conforto, rasgaram-no com largas
estradas carregadas de tráfego.
E a
Senhora de Sá, que durante séculos foi para tantos e tantos a Senhora da
Alegria, está cada vez mais esquecida, agora que virou a tristeza de tal
se ver. Diferente a verá certamente a Marta Duarte, ali vivendo, com a
sua juventude e bom senso (ela que fez esta rubrica, com entusiasmo, por
várias semanas).
A Rua,
essa está cada vez mais descaracterizada. Abrindo logo após o quartel,
ficou-lhe à esquerda, por acaso, uma casa arte nova, recuperada há
poucos anos. Mais acima e do mesmo lado são ainda visíveis painéis de
azulejo que evocam a primeira viagem de avião ao Brasil, ali mandados
colocar por gente que às terras de Santa Cruz ficou a dever a sorte da
vida. Do casario antigo pouco resta, ainda que subsistam apontamentos da
viragem do século XX, quando as regras do urbanismo ganharam força no
espaço aveirense.
Mas, no
remate da rua, antes do cruzamento e à vista da capela de Sá, no último
verão, desapareceu aquela que era tida como a maior casa de carácter
arte nova, em todo o espaço concelhio. Não se pode dizer que era
particularmente bela, mas era o que era e valia como tal…
É assim
nesta terra, também assim é nesta rua. Se se não sabe ao certo quando
terá começado, também se não sabe o que a memória poderá conservar.
Destino das ruas estreitas, meus amigos, que não têm espaço em cidade
que teima em ser grande por formas menos próprias do seu carácter…
Que mal
nos fez a rua e a Senhora de Sá? |