Comemora o presente número único o 50.º aniversário da fundação da
primeira companhia de bombeiros voluntários de Aveiro, hoje já uma das
mais antigas do País.
Foi em 1882.
O antigo convento de
Sá que demorava onde hoje se encontra o quartel de Cavalaria, foi pasto
de chamas na noite de 11 para 12 de Janeiro.
O incêndio alarmou a
cidade, não pelo convento em si, mas porque revelou, mais uma vez, um
perigo enorme contra o qual não havia meios de defesa.
Outros incêndios
memoráveis tinham roubado já a Aveiro alguns dos seus melhores
edifícios.
Em 20 de Julho de
1864 ardera o Paço do Bispo, nas proximidades da actual Praça de Luís
Cipriano.
Foi um fogo
apavorante e que causou avultados prejuízos, tendo-se perdido nele
importantíssimos documentos dos nossos arquivos, alguns dos quais foram
salvos com grande perigo e sacrifício.
No antigo Paço
Episcopal achavam-se, então, instaladas as repartições do Governo Civil
e da fazenda Pública e ali residira o primeiro bispo de Aveiro, de
nomeação do Marquês de Pombal, o elegante e faustoso D. António Freire
Gameiro de Sousa e cremos que, também, o bondoso e santo prelado D.
Manuel Pacheco de Resende, que tanto sofreu com as perseguições e
barbaridades infligidas pelo miguelismo às famílias dos liberais de
Aveiro de 1828 a 1834.
Outro grande incêndio
em 24 de Junho de 1871 impressionara fundamente a população aveirense.
O sumptuoso palácio
dos Viscondes de Almeidinha, um dos raros que restavam da velha
fidalguia da antiga nobre e notável vila de Aveiro e que resistiram às
calamidades advindas com as catástrofes provenientes da obstrução da
barra, fora reduzido a um montão de escombros, durando o fogo e o
rescaldo perto de uma semana sem que a população, impotente para atacar
as chamas, pudesse salvar qualquer parte do edifício onde se haviam dado
reuniões distintas e festas de celebridade.
Foi na sessão
camarária de 12 de Janeiro de 1882 que o presidente, conselheiro Manuel
Firmino de Almeida Maia, interpretando a corrente de opinião da cidade,
propôs a aquisição de material de incêndios moderno e adequado às
necessidades do meio, e a criação de uma companhia de bombeiros.
Isto se verifica pela
acta da sessão da Câmara Municipal de 12 de Janeiro de 1882 que a seguir
reproduzimos:
Acta da sessão
camarária de 12 de Janeiro de 1882.
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... ...
«O Sr. presidente
expôs que, tendo-se dado na madrugada de hoje, e na cidade, um caso
gravíssimo, que fora o incêndio do Convento de Sá, conhecera, pelo
próprio exame dos factos a que assistiu, que as bombas e demais material
de extinção de fogo, que o município possui, não satisfazem às
necessidades dos casos que tão frequentes são nas terras onde a
população
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vive como
aqui e que por isso, propunha que a Câmara compreendendo bem as
precárias circunstâncias em que o município se encontra com relação a
material de incêndio, e à situação em que se acha, procurasse, por todos
os meios ao seu alcance, não só fazer a aquisição duma bomba, nas
condições precisas, para bem servir, mas também dos mais aprestes que
são indispensáveis em casos tais como escadas, machados, baldes, escadas
de salvação, etc. — tudo, finalmente, o que a ciência aconselha no que
respeita ao serviço de extinção de incêndios.
A Câmara concordando
em que é de urgente necessidade satisfazer, tanto quanto possível, e
dentro do limite das forças do Município, à aquisição dos indicados
meios de combate contra a calamidade dos incêndios, resolveu que ele,
Sr. Presidente informando-se completamente do material que se precisa
haver para realizar o pensamento, que, hoje, pode dizer-se, é de todos
os habitantes da cidade, proponha. o mais breve que lhe seja possível um
projecto e plano completo, não só dos meios de adquirir aqueles que se
julguem indispensáveis, mas também da formação de um corpo de bombeiros
voluntários que possa desempenhar-se satisfatoriamente do encargo que
tão nobre e elevada missão impõe.
O Sr. presidente,
aceitando gostosamente o encargo e comissão que a Câmara lhe cometeu,
propôs mais, como acto apenas de justiça, que ela agradecesse em seu
nome e por conseguinte em nome do município que tem a honra de
representar, a todos os indivíduos que se distinguiram pela nobreza do
seu arriscado e humanitário esforço, não só na salvação das vidas que
correram risco, mas dos haveres que ali existiam e ainda da própria
propriedade, a maior parte da qual foi salva pelo arrojo e dedicação
daqueles que não sabem faltar ao seu dever de humanidade, — daqueles a
quem esta terra se honra de chamar filhos.
A Câmara aprovou o
pensamento do Sr. presidente e encarregou-o de fazer público o proposto
agradecimento.»
aa) Manuel Firmino de
Almeida Maia, Luís Couceiro da Costa Rufino César de Sousa Monteiro,
João Gonçalves Neto, José dos Santos Gamelas,
José António de Azevedo,
Joaquim Luís de Abreu, António Vieira dos Santos e
Francisco Pinho
Guedes Pinto.
Ao apelo da Câmara
Municipal acudiu o Povo e logo do seio deste, das suas classes mais
humildes, daquelas que em Aveiro se chamavam as dos artistas, saíram os
fundadores da corporação que a cidade acolheu com o maior júbilo e logo
acarinhou com a sua melhor simpatia.
Admiravelmente
correspondeu a Companhia às esperanças nela depositadas.
Na acta da sessão
municipal de 27 de Janeiro de 1887, dizia se o seguinte:
Acta da sessão da Câmara Municipal de Aveiro de 27 de Janeiro de 1887.
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
... ... ... ... ...
«Ainda a propósito de incêndios mais lembrou o Sr. Vice-Presidente à
Câmara, que, vista a coragem patriótica de que aí está dando provas um
punhado de rapazes, artistas na sua grande maioria organizados em
sociedade com o fim de voluntária e gratuitamente se exporem ao
arriscado serviço de extinção de incêndios, o que, já por vezes, se tem
realizado, portanto se todos com denodo, e muitos com perícia pelo que
até a autoridade superior do distrito os quis galardoar era justo e
humanitário que esta Câmara, em sinal de reconhecimento e dentro das
faculdades que lhe confere o n.º 22 do artigo 117.º do Código
Administrativo assegurasse à parte daqueles cidadãos que não têm outros
meios de subsistência além do seu braço, ou tendo os forem provadamente
insuficientes sem esse auxílio, um subsídio senão condigno, ao menos nos
estreitos limites das forças do cofre deste município, para o caso de
esses intrépidos se impossibilitarem de trabalhar por desastre sofrido
no serviço de extinção dos incêndios, e enquanto durar essa
impossibilidade devendo o subsídio estender-se à viúva e filhos do
bombeiro no caso de morte, que seja consequência daquele de desastre.
aa) Elias Fernandes
Pereira, presidente; José António Pereira da Cruz, José dos Santos
Gamelas, António Eusébio Pereira, António Vieira dos Santos,
António
Antunes de Abreu e Melo, Avelino Dias de Figueiredo, Joaquim Maria Ala e
Manuel Marques.
Está conforme. O
Comandante dos Bombeiros Voluntários de Aveiro.
Aveiro, 1 de Março de
1888.
Joaquim de Melo
Freitas.
Foi primeiro
comandante da Companhia o oficial de marinha
Francisco Augusto da
Fonseca Regala, há anos
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falecido, e que durante muito tempo exerceu o cargo de Reitor do Liceu,
seguindo-se lhe o Sr. Dr. Joaquim de Melo Freitas, um dos mais
brilhantes espíritos que, com enorme erudição e nunca desmentido
civismo, se formou e desenvolveu no seio deste povo.
Ao Dr. Joaquim de
Melo Freitas sucederam o Sr. João Bernardo Ribeiro Júnior, ainda
felizmente vivo, simpática relíquia desse brilhante passado aveirense, e
Manuel Gonçalves Moreira, oficial da marinha mercante, cujo aveirismo
apaixonado ainda está na memória de quantos com ele conviveram.
Cada ano que passava
sobre a fundação da Companhia era uma soma de actos de benemerência a
acrescentar nos fastos do altruísmo citadino.
O seu Corpo Activo,
constituído sempre pelos filhos das classes populares, operários,
artífices, trabalhadores, nunca se poupando a trabalhos, nunca se
furtando aos perigos, nunca se esquivando aos deveres que a sua honrosa
farda e o seu voluntário juramento lhe impunham.
Os seus dirigentes
pondo na administração, direcção, instrução, comando e disciplina da
associação e dos seus bombeiros o escrúpulo, o cuidado, o zelo e a
honradez que são o timbre destas beneméritas corporações.
* * *
Em 1907 passa a
Companhia por grandes transformações, renovando-se o seu material e
remodelando-se os seus serviços internos.
A Câmara luta com
dificuldades financeiras e o seu auxílio é precário, incapaz de
sustentar só por si um serviço dispendioso, e exigente como é o dos
incêndios.
Mas as suas faltas
são supridas pelos Sócios Protectores, pelo Povo da Cidade, que nunca
deixa de dar o seu óbolo para os elementos materiais de que carece a
Companhia, que em numerosos incêndios, como o da Rua de José Estêvão, em
24 de Agosto de 1898, sempre havia provado denodo, bravura e
competência, apenas lutando tantas vezes com a deficiência dos seus
meios de ataque e de defesa.
Em 1909 outra
companhia se funda em Aveiro, adoptando o nome glorioso de
Guilherme
Gomes Fernandes.
Abre-se um período de
competência, por vezes de rivalidade inevitável.
Um ou outro
incidente, provocado pela paixão que os filiados ou amigos das duas.
companhias sentem pelas suas respectivas corporações, chega a inquietar
o espírito público que não oculta o seu desgosto pelo facto. A breve
trecho, porém, o bom senso triunfa, o pensamento superior da missão do
bombeiro domina todos os dissídios e num e noutro campo se retoma a
serenidade, rapidamente se esquecendo todos os descontentamentos para se
dedicar, esta grande família de voluntários, ao bem público que é o seu
único fim, o seu único objectivo, o seu único pensamento, o prémio do
seu esforço e o galardão da sua vida.
Assim se reconquistou
rapidamente a confiança e se tornou possível a protecção do. público que
tanto têm concorrido para a situação de modesta decência em que os
bombeiros aveirenses hoje se encontram.
Dotadas as duas
Companhias pela Câmara Municipal com edifícios próprios para seus
quartéis, entrou-se no período de actualização do material.
Viera a escada
Magyrus, cuja falta tanto se sentira em alguns incêndios mais difíceis,
vieram depois, com as viaturas automóveis de pronto-socorro, oferecidas
por beneméritos, as admiráveis e utilíssimas moto-bombas.
A Companhia alarga a
sua acção e mercê destes progressos da técnica e da mecânica, estende os
seus serviços
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às povoações e concelhos vizinhos, tendo-se tornado notável a sua acção
no grande incêndio dos armazéns da C. P. na Pampilhosa em 1926,
acorrendo a todos os sinistros a que é chamada, sentindo, por isso
mesmo, as nossas aldeias já, numerosas vezes, os seus benefícios.
Mas não é apenas nas
ocasiões de incêndio, inundação, naufrágio ou sinistro que a Associação
Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Aveiro presta os seus serviços
e envia os seus socorros.
Nunca ela se esquece
de acompanhar os seus filiados, os seus protectores, os seus amigos, à
sua última morada. E nunca faltou nas solenidades de civismo local ou de
patriotismo, nunca também se esqueceu das vítimas das grandes
catástrofes, promovendo quêtes e bandos precatórios a favor dos
sinistrados, como dos do terramoto de Messina, da explosão de Sá, do
terramoto de Benavente, da fome de Cabo Verde, das vítimas da revolução
de 5 de Outubro, do terramoto dos Açores, etc., cumprindo assim, também,
ainda, uma alta missão de solidariedade humanitária.
Merecem-lhe ainda os
pobres da cidade particulares cuidados, sendo tradicional o bodo que em
dia de Ano Novo distribui, consolando muita infelicidade e levando a
alegria a muitos lares de conterrâneos seus infortunados.
Bem merecida e justa
foi, pois, a condecoração que o Governo da República lhe concedeu, por
tudo isto, atribuindo-lhe a Ordem de Benemerência cuja medalha ostenta
na sua bandeira.
São 50 anos de
generosidade e de bondade; é meio século de altruísmo exercitado a
dentro e à roda desta Associação que hoje constitui um padrão
honrosíssimo das virtudes Cívicas do Povo Aveirense.
Mal me ficaria a mim,
a quem a excessiva benevolência dos filiados desta Associação
Humanitária persiste em me eleger seu presidente, levar muito longe os
termos elogiosos com que devia, neste momento, acompanhar o esboço da
biografia associativa.
Mas nem como seu
presidente eu posso deixar de ser justo e verdadeiro, porque acima da
vaidade do cargo eu ponho, como sempre, a minha consciência de homem e a
minha imparcialidade de aveirense que estima igualmente tudo quanto
neste meio vale e quantos, para honra e bem desta terra, aqui trabalham.
Mas a verdade é que o
esforço beneficente desta Associação e dos seus protectores é um exemplo
admirável e raro de persistência no bem, de culto fervoroso da
generosidade, de sacrifício ininterrupto pela causa humana!
Nos nomes e nas
pessoas dos seus Voluntários, dos seus Comandantes, da sua Direcção, dos
seus Fundadores e dos seus Protectores, eu saúdo daqui quantos têm dado
e continuam dando tão abnegado e belo exemplo de amor pela Humanidade,
sem esperarem nem pretenderem nenhuma vantagem ou benefício de ordem
material e sem mesmo contarem com as recompensas que as religiões sabem
prometer, para depois da morte, àqueles que seguem os seus ditames.
É o Bem apenas pelo
próprio Bem!
Bendito seja!
Cinquenta anos de
Altruísmo, cinquenta anos de evangélica, desinteressada, superior
cruzada pela Salvação Pública!
Benditas sejam as
suas Bodas de Ouro!
Cinquentenário de
Valor e de Virtude — feliz de mim que te vejo — felizes de quantos te
comemoram, e bendito e louvado seja o coração do Povo que tem a dita de
te celebrar! |