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O "Bombeiro" David Cristo

 
           
 

 

 

omo habitante deste mundo, onde não pedi para nascer, não posso deixar de me sentir constrangido, e até envergonhado, por saber que os países mais responsáveis pelo destino deste infeliz planeta malbaratam os seus recursos limitados em engenhos de morte que amanhã serão outras tantas provas deste delito monstruoso a ser apontado, severamente, pelos vindouros, com certeza muitíssimo mais lúcidos e, por isso, possuidores, também, de uma verdadeira humanidade. A ostentação insolente destes engenhos é simplesmente lastimável e faz-nos acreditar que os manda-chuva responsáveis contam, à partida, com a ignorância, o "Iaissez passer", a morna indulgência, a inconsciência, ou a simples indiferença dos outros homens já receptivos à enormidade pela robotização conseguida, sub-repticiamente, pelos meios ao dispor da sociedade consumista.

Pois que se assim não fosse, como se atreveriam a materializar esta sua deletéria poluição cultural? Quando leio em caracteres de caixa alta e a quatro ou mais colunas que a nacionalidade tal, ou tal, conta, impante, com mais um submarino atómico, eu não posso deixar de pensar que se gastou, ingloriamente, o equivalente ao que custaria hoje uma cidade de 50000 habitantes. Isto significa uma Aveiro-cidade ao serviço surdo da matança ainda por determinar. Quando se despenha um bombardeiro, ou simplesmente se deixa ao abandono, por obsoleto, já sei que foi queimada a quantia equivalente ao salário de 250.000 professores durante o ano de ensino, ou o equivalente a trinta faculdades de ciências para 1.000 estudantes cada uma, ou o equivalente a setenta e cinco hospitais de cem camas completamente equipados. Sabemos que os americanos calculam ter de gastar, por ano, a soma astronómica de 3.000 milhões de dólares para poderem respirar novamente ar puro. E não desconhecemos que 8 por cento da receita nacional francesa vai acabar no automóvel enquanto – espantem-se amigos! – apenas 4 por cento dessa receita é gasta em alojamentos (informação de Michel Ragon, in "Cidades do Futuro").

Sociedade, pois, desumanizada pelo contributo brutal, maciço, ou simplesmente subterrâneo dos "mass-media". Sociedade robotizada submergindo-se de alienação em alienação. A praxis social vivendo mais um partidarismo clubista e menos, mesmo muito menos, uma salutar e desejável, urgentemente desejável, abertura capaz de congregar todos os esforços no sentido de reconstruir o nosso país em bases socialmente justas. Mas nós, portugueses, e como vimos, não temos o exclusivo da estupidez consumista.

Se o que já escrevi parece destinar-se a qualquer artigo de cariz flagrantemente político é apenas porque, nesta vida, nada há de político...

/ p. 48 / Quando, noite alta, a sereia geme no negrume clamando pela acção rápida, decidida e eficiente do bombeiro que, muito justamente, descansa os seus ossos dor idos pelas suas obrigações de sobrevivência, tantas vezes difícil e exaustiva, nós apenas vociferamos contra o corte do nosso sono, ou do nosso sonho que serão retomados sem a preocupação mínima de saber quem, nesse momento, engrossa a voz da cidade com os seus lamentos.

– Onde seria o fogo?

Perguntamos displicentemente (se perguntamos) enquanto bebemos o café da manhã. Interiormente, esse sossego tépido, essa calma, ou até alguma dor epidérmica (que por ser epidérmica, não chega a ser dor) pela verificação de que nós e os que nos são próximos continuamos muitas milhas a leste da ocorrência. Todos os dias, todas as noites, a repetição do som magoando o espaço, ir rompendo pelas avenidas, ruas, largos e vielas, num frenesim de chamamento que só encontra eco e resposta necessária naqueles voluntários que representam, para mim, o exacto oposto dos tais manda-chuva responsáveis pelo desvio do erário público das verbas colossais para engenhos geradores de matanças cegas e maciças. Estes homens não são chamados para matar porque não respondem a apelos de fanfarras, nem a tambores de guerra, nem à dinâmica de discursos habilmente inflamantes. Para eles as madrugadas de frio encanado pelas ruelas da beira-mar, madrugadas de descanso interrompido pela inquietação das sereias. O ímpeto de generosidade vence de imediato o langor trazido do mundo quente do sonho. É preciso. E tanto basta para vencer todos os atritos, às vezes, fortes imposições de carácter físico derivadas de trabalhos esgotantes. Camionetas, ambulâncias, carros, tudo vermelho e veloz atravessando as ruas desertas ou abrindo caminho na cidade já viva e ondulante. De facto, ser bombeiro voluntário é possuir uma riqueza imensa e rara de abnegação e que o povo – esse povo bombeiro – guarda natural e avaramente no mais discreto anonimato.

Tudo está organizado para resposta pronta e eficiente. E esta eficiência pressupõe, necessariamente, prodígios de vontade e de sacrifício, tudo isto perdido também na penumbra e que, por isso mesmo, raras vezes chega ao conhecimento de quantos dela beneficiam. E somos nós todos os beneficiados. E somos nós todos os protegidos. Todos. Ninguém, que assim nos serve tão devotadamente, pergunta quanto valem as vidas que protegem. Suponho que este total desinteresse tem aqui a sua mais alta expressão de inteira, pura e universal humanidade. Por isso não podemos deixar de sentir o mais profundo respeito por estes homens. Por isso não podemos deixar de admirar sentidamente  / p. 49 / os trabalhadores subterrâneos que permitem, com tanto ou maior sacrifício ainda, a garantia de que os olhos ensonados, de que o corpo ofegante de quem corre, tenha a tal resposta pronta e adequada às necessidades. Tudo a postos para a saída. Começa aqui o gesto do homem-dador. Mas imparável, também, o trabalho extenuante, persistente, perdido na sombra do mesmo anonimato, o que significa, afinal, aquilo a que chamarei espírito de bombeiro, ave rara, que só poucos terão o privilégio de o sentir em toda a sua verdadeira dimensão, em toda a sua plenitude. Conheço alguns, mas nutro por todos eles uma ternura, onde o respeito se alçaprema a cada momento.

Alienados, robotizados, enterrados até ao pescoço nesta sociedade negociante (no dizer de Camus) nem reparámos que o nosso conterrâneo e amigo David Cristo – e aqui a grandeza do seu trabalho apaga qualquer título académico – foi distinguido com a mais alta e honrosa distinção que se pode atingir adentro de um grupo eleito, não por sufrágio antecedido por campanhas sobrecarregadas de promessas mirabolantes, mas e apenas pelos serviços ímpares prestados ao verdadeiro partido de salvação nacional a que, modestamente, chamamos de bombeiros voluntários. Não houve alardes, como os não há quando se salvam vidas e haveres, quando se protegem as nossas florestas, as nossas obras únicas e insubstituíveis. O bombeiro David Cristo apenas cumpriu. E isso foi tudo, afinal, quanto se esperava de um verdadeiro bombeiro voluntário. Artista de gosto finíssimo, de variadíssimas aptidões, não regateia o tempo precioso que consome ao serviço da colectividade. E isto é tanto mais de encarecer e de admirar, quanto sabemos o que as letras e as artes têm perdido pela sua falta de disponibilidade. De qualquer maneira, eu não posso deixar de desejar ao amigo e, sobretudo, ao bombeiro David Cristo, uma muito, muito longa actividade.

Como acabámos de verificar, não se tratava de um artigo deliberadamente político, mas, a despeito desta verdade, não deixarei de insistir na loucura, ou melhor, no desplante dos autênticos roubos feitos à humanidade mal informada, ou malevolamente orientada, e que assim permite o gasto anual de somas astronómicas em bombardeiros progressivamente mais sofisticados, em porta-aviões, em submarinos atómicos, em ogivas termo nucleares, loucuras estas que impedem directamente, ou à tabela, que os nossos bombeiros sejam pagos condignamente, impedem que os nossos bombeiros necessitem de oferecer à cooperação que servem um corpo cansado pelas vicissitudes ligadas à sobrevivência. E, finalmente, impedem que o nosso David Cristo possa dar-se de corpo inteiro aos seus escritos, à sua arte, à sua própria família.

 
 

Vasco Branco

 
 

págs. 47 a 49

   

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