Mensário do 7º D

  Sal de Aveiro  ▲

Maio 93

Nº 3


 

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ENTREVISTA A TRICANAS DA BEIRA-MAR

CRISTINA – Quais são as diferenças mais acentuadas entre uma salineira antiga e uma salineira actual?

D. NATÁLIA – Dantes andavam todas trajadas com saias compridas, um lenço e um avental... Agora já não se usa nada disso. Andam com uma roupa vulgar.

HUGO – Sabemos que há cada vez menos salineiras em actividade. Qual o motivo?

D. NATÁLIA – Porque agora há pouco sal e poucas marinhas. Tá com tendência a acabar.

MARTA – Na faina do marnoto, qual é a tarefa mais dura e a mais agradável?

D. LUZIA – Bem, é uma tarefa dura, mas até é saudável. Nem há vida com' á de um marnoto. O meu marido ainda hoje tem saudades, mas era impossível continuar, por falta de auxílio e porque os moços estavam muito caros. Assim como ele, também outros colegas vão abandonando.

CRISTINA – Havia alguma tarefa que gostassem de fazer em especial?

D. LUZIA – Eles gostavam de ocupar a sua vida. Por exemplo, o meu marido, desde menino que, no Inverno, ia para os barcos pescar com o meu sogro e ainda hoje vai.

HUGO – Há alguns hábitos que queiram recordar?

D. NATÁLIA – Passou-se muito, meu querido, que não se passa agora. Íamos para as "bichas", para apanhar o pão, para a Comissão Reguladora para nos darem o comer... o arroz por senhas; lavávamos a roupa com sabonete; temperávamos o café com rebuçados e íamos para a fábrica às quatro horas da manhã para nos darem dois pães!

MARTA – E quanto a festas e tradições?

D. NATÁLIA – Era pelo Santo António, S. João e S. Pedro. Falava-se a um conjuntozinho e fazia-se a festa.

CRISTINA – Quais delas se extinguiram?

D. NATÁLIA – Modificou-se tudo. Agora já não se fazem festas nenhumas de S. João, porque as televisões e os vídeos acabaram com tudo. No nosso tempo, nem sabíamos o que era um rádio!

HUGO – É essa a razão para tal facto?

D. NATÁLIA – Tudo alterou. Dantes andávamos sempre a contar os tostõezinhos. Agora há mais facilidades.

MARTA – Qual era a tradição do final da botadela?

D. LUZIA – Os marnotos iam todos ajudar na marinha que se ia pôr a sal. Eu adorava, porque o sal na salina parecia brilhantes. No final, tudo comia: vagens com carapau e bacalhau com batatas. Bebiam vinho e comiam também broa e/ou pão de trigo. Levavam guitarras, dançavam com as namoradas e cantavam. A comida vinha de casa, transportada em canastras. Enfim, fazia-se uma festa.

CRISTINA – Conhecem algumas canções ligadas ao sal?

D. LUZIA – Vamos tentar ver se a gente se lembra...

(As entrevistadas brindaram-nos com a canção da Salineira, reproduzida na página seguinte).

D. LUZIA – Eram as cantigas que as nossas mães cantavam antigamente, em casa, quando vinham das salinas. Nós ensinamos aos nossos netos e eles gostam!

D. NATÁLIA – E há outra quando iam para as salinas de barco – a canção do remador.

(Clicar  na partitura para acordeão gentilmente cedida pelo Sr. Gonçalo Lé)

D. LUZIA – A minha família foi sempre ligada às salinas. Como os moços eram multo caros, o meu avô, com doze filhos, tinha de levar as filhas, para poderem sobreviver e eram elas que acartavam o sal. Iam de manhã e vinham à noite. "Riam" também o sal e depois depositavam-no nas eiras para fazer os montes. Mais tarde, acartavam-no para o barco. Hoje são os homens que fazem este / pág. 3 / trabalho. Nesse tempo, era tudo feito por elas e pelos irmãos... Enfim, pela família. As marinhas tinham os seus proprietários. As pessoas contratadas ficavam a trabalhar nelas durante muitos anos e, ao fim de um certo tempo, os donos passavam a tratá-los como sendo da família. Os lucros dividiam-se: metade para o dono e outra metade para o marnoto. E desta, ainda tinha de pagar as despesas e ao pessoal que o ajudava!

HUGO – Qual a relação entre a festa da Senhora das Febres e o sal?

D. LUZIA – Essa já é uma tradição dos marnotos. Mas também está com tendência a acabar. Dantes os mordomos iam tirar a esmola de sal pela ria toda e depois vendiam esse sal para ajuda da festa. Hoje, já ninguém quer fazer esses trabalhos; nem há quem dê sal nem há marinhas... Fazem uma festinha pobre com aquilo que o povo da Beira-Mar arranja.

MARTA – Porque é que se realiza em Setembro?

D. LUZIA – Porque é a altura em que, se chover, acaba a safra do sal.

CRISTINA – Não querem cantar algumas quadras tradicionais? Nós gostaríamos muito de as ouvir!

D. NATÁLIA e D. LUZIA – Ao nosso padroeiro:

Ó Santo casamenteiro,
Casai as feias e as belas.
Nosso Santo rapioqueiro,
Não te esqueças das donzelas.

Neste dia – que festança! –,
P'ra ti vai nosso carinho,
Hás-de ir connosco na dança,
Ó rico S. Gonçalinho.
Hás-de saltar as fogueiras
À noite, no arraial,
Dançar com velhas gaiteiras
Uma dança divinal.

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HUGO – Quando se realiza a festa do vosso patrono?

D. NATÁLIA – Dia 10 de Janeiro, é a primeira do ano.

MARTA – Como nasceu a tradição das cavacas?

D. NATÁLIA – Não sei, quando nascemos, já atiravam as cavacas. Hoje é uma coisa!... atiram-se arrobas e arrobas!

CRISTINA – Há alguma relação entre esta festa e a actividade do sal?

D. LUZIA – Não sei explicar, são tradições já dos nossos avós. Eu sempre ouvi dizer que o San Gonçalinho era muito milagroso para os pescadores.

D. NATÁLIA – Eu lembro-me de uma vez, quando tinha a loja, ir lá um pescador da traineira "Paralela" e disse: – Olhe, dona Natália, a senhora não calcula... Nós estávamos mesmo a afundar... e eu olhei para a ré e vi o S. Gonçalinho e disse: – Salvai-nos, S. Gonçalinho!... E graças a Deus, a gente salvou-se."

HUGO – O processo de reconhecimento é através das cavacas?

D. LUZIA – Sim, pagam algumas promessas e os estudantes têm muita fé, porque também vêm atirar cavacas.

D. NATÁLIA – Mesmo os "estrangeiros", portugueses emigrantes, mandam sempre as suas esmolas para o Santo. Um rapaz que está na Líbia, vem cá umas três ou quatro vezes por ano e, sempre que chega e antes de ir embora, vem sempre ao S. Gonçalinho.

D. LUZIA – O meu pai, que nem era nada de santos, ficou muito doente e "apegou-se" com o Santinho, porque tinha fé nele... prometeu que, se melhorasse, caiava a capela por dentro e por fora... E assim foi, deram-lhe a cal, porque, naquele tempo, não a havia à venda. Já lá vão uns quarenta e nove anos.

D. NATÁLIA – O Santo é muito milagroso mas também é muito vingativo. Não gosta de certas brincadeiras... Uma vez, andavam aqui a armar a capela e um deles subiu a uma escada, pegou num cigarro e disse ao Santo "Pega, fuma", pois ele caiu da escada abaixo e ficou sem fala. Foram a médicos e tudo e não lhe encontravam nada. Então, o armador que andava com ele vai assim: "Ai, tu pega-te com S. Gonçalinho, porque foi ele que te castigou pelo que fizeste' e ele pegou-se com o Santo e disse que nunca mais voltava a brincar. E recuperou!

MARTA – E quais eram as espécies de peixe preferidas, ontem e hoje, pela gente da Beira-Mar?

D. LUZIA – Dantes eram as enguias e as caldeiradas de vários peixes, que traziam do viveiro, como os bediões, os santo antónios, as tainhas e savelhas. Faziam a arraia de Pitau, a caldeirada de enguias, bolinhos de cabozes e galeota. Nos dias de festa, comíamos galinha. Agora, as enguias já não são para a nossa bolsa e come-se o que se faz mais depressa e está mais em conta, principalmente congelados.

CRISTINA – Como era antigamente o processamento da venda do peixe?

D. LUZIA – Traziam-no em caixotes e punham-no dentro dumas cestinhas, em cima das bancas. Naquela altura, o peixe era leiloado, punham um lance e quem desse mais levava o peixe.

D. NATÁLIA – 8 escudos... 9 escudos... 9 escudos... 9 escudos... 10 escudos... 10 escudos... está entregue! Com 7$50 levava-se comer para uma data de refeições!...

D. LUZIA – Para levar o peixe para as aldeias, empilhava-se em cestos que se colocavam à direita e à esquerda dos jericos. Os barcos aportavam aqui no cais dos mercantéis. A minha mãe mandava-me vir tomar vez para a ponte de S. João, com uma serapilheira para levar caldeirada. Vendi muito e apanhei muita chuva, mas um dia, em vez de ir para lá, fui brincar para o Rossio e, quando cheguei, levei um ensaio de pancada que nem queira saber!

D. NATÁLIA – As empilhadeiras empilhavam o peixe de joelhos e punham-no dentro de umas canastras, chamadas "burriqueiras"e de cabazes, com grande ligeireza e depois, os burritos iam fazer os mercados por aí fora...

D. LUZIA – Essa profissão hoje desapareceu. Nem sabem os de agora o que a gente passou. Mas ainda há quem nos chame para ouvir contar como era.

D. NATÁLIA – A Beira-Mar era como se fosse uma grande família e a vida dos habitantes, apesar de dura, era boa e comunitária. Os vizinhos choravam a vida uns dos outros e basta que podiam deixar as chaves e o pão à porta que ninguém tirava. Aqui ninguém desconfiava dos outros e quando algum ficava doente, íamos fazer-lhe o comer e acudir. Mas, hoje em dia, até há muita gente que vive no mesmo prédio e nem se conhece!!!
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D. LUZIA – Terminamos, homenageando todas as tricanas de Aveiro:

Tricanas da Beira-Mar,
Do Alboi e do Rossio,
Vamos na barca p'ró rio
Cantar à luz do luar.

Toca a barca deslizando
À luz branca do luar,
Vem cá dentro alegre bando
De tricanas a cantar.
E o nosso canto entoando
Lembra o canto do mar
E a barca vai siderando
À luz branca do luar.

Foi um prazer ouvir estas senhoras, pela riqueza das suas informações. Oxalá continuem com a mesma disposição e saúde para poderem divulgar o nome e o típico património de Aveiro.

Agradecemos em nome dos professores e alunos da turma.

Cristina Ferreira, Hugo Almeida, Marta Tavares.

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15-12-2013