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ENTREVISTA A
TRICANAS DA BEIRA-MAR
CRISTINA – Quais são as
diferenças mais acentuadas entre uma salineira antiga e uma salineira
actual?
D. NATÁLIA – Dantes andavam todas trajadas com saias compridas, um lenço
e um avental... Agora já não se usa nada disso. Andam com uma roupa
vulgar.
HUGO – Sabemos que há cada
vez menos salineiras em actividade. Qual o motivo?
D. NATÁLIA – Porque agora há pouco sal e poucas marinhas. Tá com
tendência a acabar.
MARTA – Na faina do marnoto,
qual é a tarefa mais dura e a mais agradável?
D. LUZIA – Bem, é uma tarefa dura, mas até é saudável. Nem há vida
com'
á de um marnoto. O meu marido ainda hoje tem saudades, mas era
impossível continuar, por falta de auxílio e porque os moços estavam
muito caros. Assim como ele, também outros colegas vão abandonando.
CRISTINA – Havia alguma
tarefa que gostassem de fazer em especial?
D. LUZIA – Eles gostavam de ocupar a sua vida. Por exemplo, o meu
marido, desde menino que, no Inverno, ia para os barcos pescar com o meu
sogro e ainda hoje vai.
HUGO – Há alguns hábitos que
queiram recordar?
D. NATÁLIA – Passou-se
muito, meu querido, que não se passa agora. Íamos para as "bichas", para
apanhar o pão, para a Comissão Reguladora para nos darem o comer... o
arroz por senhas; lavávamos a roupa com sabonete; temperávamos o café
com rebuçados e íamos para a fábrica às quatro horas da manhã para nos
darem dois pães!
MARTA – E quanto a festas e
tradições?
D. NATÁLIA – Era pelo Santo António, S. João e S. Pedro. Falava-se a um
conjuntozinho e fazia-se a festa.
CRISTINA – Quais delas se
extinguiram?
D. NATÁLIA – Modificou-se tudo. Agora já não se fazem festas nenhumas de
S. João, porque as televisões e os vídeos acabaram com tudo. No nosso
tempo, nem sabíamos o que era um rádio!
HUGO – É essa a razão para
tal facto?
D. NATÁLIA – Tudo alterou. Dantes andávamos sempre a contar os
tostõezinhos. Agora há mais facilidades.
MARTA – Qual era a tradição
do final da botadela?
D. LUZIA – Os marnotos iam todos ajudar na marinha que se ia pôr a sal.
Eu adorava, porque o sal na salina parecia brilhantes. No final, tudo
comia: vagens com carapau e bacalhau com batatas. Bebiam vinho e comiam
também broa e/ou pão de trigo. Levavam guitarras, dançavam com as
namoradas e cantavam. A comida vinha de casa, transportada em canastras.
Enfim, fazia-se uma festa.
CRISTINA – Conhecem algumas
canções ligadas ao sal?
D. LUZIA – Vamos tentar ver se a gente se lembra...
(As entrevistadas
brindaram-nos com a canção da Salineira, reproduzida na página seguinte).
D. LUZIA – Eram as cantigas
que as nossas mães cantavam antigamente, em casa, quando vinham das
salinas. Nós ensinamos aos nossos netos e eles gostam!
D. NATÁLIA – E há outra
quando iam para as salinas de barco – a canção do remador.
(Clicar
na partitura para acordeão gentilmente cedida pelo Sr. Gonçalo Lé)
D. LUZIA – A minha família foi sempre ligada às salinas. Como os moços
eram multo caros, o meu avô, com doze filhos, tinha de levar as filhas,
para poderem sobreviver e eram elas que acartavam o sal. Iam de manhã e
vinham à noite. "Riam" também o sal e depois depositavam-no nas eiras
para fazer os montes. Mais tarde, acartavam-no para o barco. Hoje são os
homens que fazem este
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trabalho.
Nesse tempo, era tudo feito por elas e pelos irmãos... Enfim, pela
família.
As marinhas tinham os seus proprietários. As pessoas contratadas ficavam
a trabalhar nelas durante muitos anos e, ao fim de um certo tempo, os
donos passavam a tratá-los como sendo da família. Os lucros dividiam-se:
metade para o dono e outra metade para o marnoto. E desta, ainda tinha
de pagar as despesas e ao pessoal que o ajudava!
HUGO – Qual a relação entre a festa da Senhora das Febres e o sal?
D. LUZIA – Essa já é uma tradição dos marnotos. Mas também está com
tendência a acabar. Dantes os mordomos iam tirar a esmola de sal pela
ria toda e depois vendiam esse sal para ajuda da festa. Hoje, já ninguém
quer fazer esses trabalhos; nem há quem dê sal nem há marinhas...
Fazem uma festinha pobre com aquilo que o povo da Beira-Mar arranja.
MARTA – Porque é que se realiza em Setembro?
D. LUZIA – Porque é a altura em que, se chover, acaba a safra do sal.
CRISTINA – Não querem cantar algumas quadras tradicionais? Nós
gostaríamos muito de as ouvir!
D. NATÁLIA e D. LUZIA – Ao nosso padroeiro:
Ó Santo casamenteiro,
Casai as feias e as belas.
Nosso Santo rapioqueiro,
Não te esqueças das donzelas.
Neste dia – que festança! –,
P'ra ti vai nosso carinho,
Hás-de ir connosco na dança,
Ó rico S. Gonçalinho.
Hás-de saltar as fogueiras
À noite, no arraial,
Dançar com velhas gaiteiras
Uma dança divinal.
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HUGO – Quando se realiza a festa do vosso patrono?
D. NATÁLIA – Dia 10 de
Janeiro, é a primeira do ano.
MARTA – Como nasceu a
tradição das cavacas?
D. NATÁLIA – Não sei, quando
nascemos, já atiravam as cavacas. Hoje é uma coisa!... atiram-se arrobas
e arrobas!
CRISTINA – Há alguma relação
entre esta festa e a actividade do sal?
D. LUZIA – Não sei explicar,
são tradições já dos nossos avós. Eu sempre ouvi dizer que o San
Gonçalinho era muito milagroso para os pescadores.
D. NATÁLIA – Eu lembro-me de
uma vez, quando tinha a loja, ir lá um pescador da traineira "Paralela"
e disse: – Olhe, dona Natália, a senhora não calcula... Nós estávamos
mesmo a afundar... e eu olhei para a ré e vi o S. Gonçalinho e disse: –
Salvai-nos, S. Gonçalinho!... E graças a Deus, a gente salvou-se."
HUGO – O processo de
reconhecimento é através das cavacas?
D. LUZIA – Sim, pagam
algumas promessas e os estudantes têm muita fé, porque também vêm atirar
cavacas.
D. NATÁLIA – Mesmo os
"estrangeiros", portugueses emigrantes, mandam sempre as suas esmolas
para o Santo. Um rapaz que está na Líbia, vem cá umas três ou quatro
vezes por ano e, sempre que chega e antes de ir embora, vem sempre ao S.
Gonçalinho.
D. LUZIA – O meu pai, que
nem era nada de santos, ficou muito doente e "apegou-se" com o Santinho,
porque tinha fé nele... prometeu que, se melhorasse, caiava a capela por
dentro e por fora... E assim foi, deram-lhe a cal, porque, naquele
tempo, não a havia à venda. Já lá vão uns quarenta e nove anos.
D. NATÁLIA – O Santo é muito
milagroso mas também é muito vingativo. Não gosta de certas
brincadeiras... Uma vez, andavam aqui a armar a capela e um deles subiu
a uma escada, pegou num cigarro e disse ao Santo "Pega, fuma", pois ele
caiu da escada abaixo e ficou sem fala. Foram a médicos e tudo e não lhe
encontravam nada. Então, o armador que andava com ele vai assim: "Ai, tu
pega-te com S. Gonçalinho, porque foi ele que te castigou pelo que
fizeste' e ele pegou-se com o Santo e disse que nunca mais voltava a
brincar. E recuperou!
MARTA – E quais eram as
espécies de peixe preferidas, ontem e hoje, pela gente da Beira-Mar?
D. LUZIA – Dantes eram as
enguias e as caldeiradas de vários peixes, que traziam do viveiro, como
os bediões, os santo antónios, as tainhas e savelhas. Faziam a arraia de
Pitau, a caldeirada de enguias, bolinhos de cabozes e galeota. Nos dias
de festa, comíamos galinha. Agora, as enguias já não são para a nossa
bolsa e come-se o que se faz mais depressa e está mais em conta,
principalmente congelados.
CRISTINA – Como era
antigamente o processamento da venda do peixe?
D. LUZIA – Traziam-no em
caixotes e punham-no dentro dumas cestinhas, em cima das bancas. Naquela
altura, o peixe era leiloado, punham um lance e quem desse mais levava o
peixe.
D. NATÁLIA – 8 escudos... 9
escudos... 9 escudos... 9 escudos... 10 escudos... 10 escudos... está
entregue! Com 7$50 levava-se comer para uma data de refeições!...
D. LUZIA – Para levar o
peixe para as aldeias, empilhava-se em cestos que se colocavam à direita
e à esquerda dos jericos. Os barcos aportavam aqui no cais dos
mercantéis. A minha mãe mandava-me vir tomar vez para a ponte de S.
João, com uma serapilheira para levar caldeirada. Vendi muito e apanhei
muita chuva, mas um dia, em vez de ir para lá, fui brincar para o Rossio
e, quando cheguei, levei um ensaio de pancada que nem queira saber!
D. NATÁLIA – As
empilhadeiras empilhavam o peixe de joelhos e punham-no dentro de umas
canastras, chamadas "burriqueiras"e de cabazes, com grande ligeireza e
depois, os burritos iam fazer os mercados por aí fora...
D. LUZIA – Essa profissão
hoje desapareceu. Nem sabem os de agora o que a gente passou. Mas ainda
há quem nos chame para ouvir contar como era.
D. NATÁLIA – A Beira-Mar era
como se fosse uma grande família e a vida dos habitantes, apesar de
dura, era boa e comunitária. Os vizinhos choravam a vida uns dos outros
e basta que podiam deixar as chaves e o pão à porta que ninguém tirava.
Aqui ninguém desconfiava dos outros e quando algum ficava doente, íamos
fazer-lhe o comer e acudir. Mas, hoje em dia, até há muita gente que
vive no mesmo prédio e nem se conhece!!!
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D. LUZIA – Terminamos, homenageando todas as tricanas de Aveiro:
Tricanas da Beira-Mar,
Do Alboi e do Rossio,
Vamos na barca p'ró rio
Cantar à luz do luar.
Toca a barca deslizando
À luz branca do luar,
Vem cá dentro alegre bando
De tricanas a cantar.
E o nosso canto entoando
Lembra o canto do mar
E a barca vai siderando
À luz branca do luar.
Foi um prazer ouvir estas senhoras, pela riqueza das suas informações.
Oxalá continuem com a mesma disposição e saúde para poderem divulgar o
nome e o típico património de Aveiro.
Agradecemos em nome dos
professores e alunos da turma.
Cristina Ferreira, Hugo
Almeida, Marta Tavares.
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