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farol n.º 29 - mil novecentos e sessenta e oito ♦ sessenta e nove, págs. 8 e 9.

O GORRO DO PINTOR

(Inspirado na poesia de Guerra Junqueiro − O F I E L)

José Manuel de H. Briosa e Gala
(4.º ano)
 

CHAMAVA-SE Manuel o pobre rapaz; era magro e anémico e vivia com uma madrasta numa frágil cabana para as bandas da serra. Tinha dez anos quando lhe morreu o pai, tuberculoso, choque brutal e atroz, de que sempre ficara lesado. Apagara-se a última chama que o acalentava e lhe dava ânimo para seguir a tortuosa estrada da vida. A mãe, essa, nunca a conhecera, pois morrera de parto.

Era agora um rapaz dos seus quinze anos e vivia amargurado com os maus tratos que a madrasta lhe infligia.

Até que um dia, com o corpo mal tratado de vergastadas desenfreadas, resolveu fugir. Assim andou durante uns anos, vagueando sem destino, como um saltimbanco, sendo por vezes obrigado a pedir e a furtar, para sobreviver, para não ser arrastado por essa corrente tumultuosa dos que morrem esfomeados, sem uma côdea para iludir a fome. Mas, dentro dele, havia uma sensibilidade espantosa e, sem saber como, fez-se pintor e fez-se homem. Enamorara-se profundamente de uma rapariga, cujos pais, ricos e orgulhosos, ao saberem da sua condição social, se mudaram sem deixar vestígios, deixando-o a ele uma vez mais só na vida, com uma lembrança do seu amor: um gorro que ela lhe dera, quando se conheceram. Um dia, encontrou numa rua escura um triste e escanzelado cão, um vira-lata, sem coleira, sem ninguém, mas de olhar tão lânguido, tão doce que o artista não se conteve em o afagar e murmurou-lhe: «Desafortunado» − lastimou − não passas deu um miserável como eu... Anda, levanta-te, amigo! Quem sabe se juntos não saberemos sofrer com mais resignação?»

E o tempo foi passando e tornaram-se dedicados amigos, compartilhando as privações e as dores, penando juntos. Mas eis que um dia tudo se modificou! A Fortuna, que até então lhe era desconhecida e lhe virara a cara arrogante e enjoada, estende-lhe os braços, sorridente, convidando-o a subir a tão alto pedestal, até então inacessível onde a Glória se ajoelhou humilde e culpada a seus pés. Mas, para o pobre cão, infelizmente, nem só a vida lhe mostrou uma nova face... O seu dono / 9 / (Manuel?! Sim! ele o próprio...) já não era o mesmo companheiro dedicado e amigo de outrora! Foi-o afastando gradualmente de si e agora sentia náuseas de o ver velho e sujo, e com o pêlo a cair, era atrozmente castigado, se o procurava acompanhar. Meteram-no depois num quarto frio e escuro, onde tinha como companheira as trevas, e periodicamente um osso duro e branco, cuja carne certamente servira aos dentes de outro cão. E um dia, sentindo que as forças o abandonavam, arrastou-se ao quarto do pintor, a quem queria ver pela última vez. Este, mal o viu, berrou contrariado: «Ainda não morreste, tinhoso?!» − mas logo mudando o tom da voz, simulou meigamente: «Coitado! como estás acabado, meu velho! Vamos dar um passeio. Vem...»

Calmamente se foram aproximando das águas turbulentas do rio que passava próximo − ele, hipócrita, assobiando, o outro, triste como a noite a quem roubaram o luar... Chegara o momento crucial, o último: o pintor atara-lhe à coleira uma pedra a servir de lastro. O cão, cheio de mágoas, serenamente compreendeu que o seu fim estava próximo. Subitamente o artista atirou o cão nas águas escuras. Ao dar-lhe o último pontapé, porém, caíra-lhe na corrente o gorro que trazia, esse gorro, prova de um amor desinteressado, sublime. O artista, cego de raiva, gritou de dor: «Maldito animal.» Perdia o seu mais valioso e insubstituível tesouro por sua culpa. Melhor faria se o tivesse envenenado. Deitou-se irritado e nervoso. Não podia dormir. E o sol aparecia no horizonte, principiando os primeiros raios da fresca manhã. Então, sente bater paternamente à porta, quase que um arranhar. Ergueu-se e foi abrir. Qual o seu espanto, ao ver ali, prostrado a seus pés, encharcado e exânime, o cão; este olhou-o com a mesma luz doce e resignada nos olhos, que se fecharam para sempre, ao deixar cair o gorro do pintor!

 

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11-06-2018