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farol n.º 29 - mil novecentos e sessenta e oito ♦ sessenta e nove, pág. 3.

 Breve reflexão de Natal

J. Raposo
(6.º e)
 

APROXIMAVA-SE mais uma noite de Natal, doce, gelada e igual a tantas outras. Nas ruas, de montras embaciadas, respirava-se boa disposição. Faziam-se compras nas lojas, enquanto no aconchego do lar se preparavam as ementas tradicionais que iriam alegrar as mesas nos dias que se seguiam.

Eu era um dos que passeava, sem rumo certo, por essas ruas a princípio bem iluminadas e cheias, e, de súbito, tão vazias e sem sentido. Tomei consciência disso, quando a minha atenção se deteve num pobre mendigo que, sem poder ver o movimento que à sua volta se processava, vivia de um modo bastante especial a sua quadra natalícia. Pedia humildemente uma esmola e as pessoas que passavam, apressadas e felizes, ignoravam-no ou fingiam ignorá-lo. Na verdade, ao cruzarem-se com ele, sentiam aquele mesmo frio que o arrepiava, a mesma dor que o fazia sofrer e a mesma ânsia de compreensão; porém, tudo se remediava facilmente com um simples aconchegar do cachecol e uma vista de olhos indiferente sobre uma montra salvadora. Será isto fraternidade, amor, irmandade no sofrimento, numa palavra, Natal?

Serão os homens a tal ponto egoístas, hipócritas e inúteis que, numa quadra como esta, se esqueçam que há tanta gente com fome, tantas crianças a morrer, tantos soldados a matar, tantos doentes a sofrer, e não se preocupem senão consigo? Será isto o Natal de Belém?

Desde o momento em que o homem se isola no seu mundo, para viver a sua vida, sem olhar para o drama real patente no rosto amargurado de tantos dos seus irmãos, deixa de ser um elemento válido para a construção de um mundo melhor, de um mundo de amor.

Só quando o homem se aperceber deste grave erro e o procurar remediar, vivendo um nobre ideal de fraternidade, é que haverá verdadeiramente Natal.

 

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11-06-2018