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farol n.º 26 - mil novecentos e sessenta e seis ♦ sessenta e sete, págs. 3 a 6.

O DIA DE GOA

no NOSSO LICEU

NA tarde do dia 18 de Dezembro, realizou-se no nosso liceu uma cerimónia comemorativa do Dia de Goa, com uma palestra proferida pelo professor do liceu, Sr. Dr. José Marinho Afonso Álvares.

A assistência, bastante numerosa, seguia com evidente interesse o tema desenvolvido pelo Sr. Dr. Álvares, («A Projecção de Goa no Mundo») que a seguir transcrevemos na íntegra:

1 – No mundo contemporâneo, Portugal encontra-se, em relação ao Ocidente, na mesma posição única e insubstituível que já teve no começo de expansão: somos a última amarra da cristandade nas terras do Oriente; estamos, no exercício da soberania legítima, mais ou menos em toda a parte donde foi expulsa a presença europeia. Não depende inteiramente de nós que nessas paragens nos considerem o último dos inimigos a vencer, mas faremos do nosso lado, como até aqui, tudo quanto cabe na política da boa vizinhança tradicional de um país que não faz agravo a ninguém, e estendemos a mão leal a todos quantos são os nossos próximos pelo imperativo da geografia. Sabemos, porém, claramente que a filosofia de agressão e conflito ganhou muitos dos homens que influenciam de algum modo o condicionalismo dos nossos interesses legítimos e, por isso, estamos sendo o objecto gratuito de muita conspiração externa e dos ataques mais desleais. Esta deslealdade e conspiração atingiram o seu ponto mais alto no chamado «caso de Goa», que culminou com a brutal e violenta agressão armada e a consequente ocupação deste território ultramarino, onde a soberania portuguesa se vinha exercendo desde há 4 séculos.

2 – O «caso de Goa» tem o seu ponto de partida com a criação da União Indiana e dos outros Estados asiáticos após a última Grande Guerra de 1939/1945.

O subcontinente indiano, durante séculos e séculos fraccionado por razões morais, rácicas, sociais, religiosas, linguísticas, encontrou em factores externos o pretexto para lutar por uma unidade política que, de resto, se revelaria inviável.

A presença de estrangeiros – que sempre se mantiveram e sempre declararam querer manter-se como tais – forçou os indianos a recolherem-se dentro de si próprios. Do facto resultou aquilo a que o primeiro-ministro Nehru chamou «a verdadeira descoberta da Índia».
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Mais por iniciativa e curiosidade dos estranhos do que por decisão dos Indianos, o passado hindu foi investigado em todos os seus ângulos. Foram trazidas à superfície as criações adormecidas da civilização indiana. Escavações patentearam as grandes ruínas clássicas; um novo estudo de velhos documentos revelou toda uma cultura já recuada; e o mundo tomou conhecimento da filosofia do mundo hindu, da sua técnica, das suas concepções científicas.

Entretanto, o Partido do Congresso, aglutinador das vontades do povo indiano, lançava as bases dos desejos de independência. Sempre por métodos pacifistas ou apresentados como tais, o Congresso lutou em dois planos: de um lado, contra o domínio estrangeiro; do outro, procurando reformar a orgânica social e a mentalidade do próprio povo indiano.

De degrau em degrau, o Governo britânico viu-se forçado a percorrer o caminho da retirada. A campanha anti-britânica avolumava-se. Entretanto, as condições políticas na Europa agravavam-se. A Alemanha ressurgia, Hitler lançava o nacional-socialismo.

Com o findar da guerra, na Europa e depois no Pacifico, a permanência britânica no Industão era claramente insustentável, pelo menos sem um esforço que a Inglaterra não queria nem podia talvez fazer. Por outro lado, o clamor exaltado de independência, havia ganho uma nova faceta: já não era anti-britânico apenas: desde 1942 era sobretudo anti-ocidental. A propagando nipónica disseminada durante a guerra – «A Ásia para os Asiáticos» – principiava a produzir os seus frutos. E a Índia foi um dos primeiros beneficiados. O Governo trabalhista de Atlee concedia-lhe a independência soberana (1947), muito embora por conveniência prática o país, transformado em república, permanecesse no quadro da Comunidade Britânica.

A independência, porém, trouxe consigo a partilha política: é que ao lado da União Indiana criava-se o Paquistão. Os construtores da independência tinham esquecido que a unidade territorial ou geográfica não é suficiente para fundamentar ou determinar a unidade política.

Esqueceram que só o poder político inglês provocara um sentimento nacional colectivo e que, desaparecido aquele, a história reafirmaria os seus direitos. Esqueceram que a noção de «pátrio indiana» não coincidia com a noção de «pátria hinduísta»: aquela, além da noção hinduísta, abrangia também a nação islâmica.

Mas a independência de um país nem sempre é sinónimo do seu progresso, da sua prosperidade, do seu desenvolvimento. E porque a independência não trouxe, como esperavam, progresso, prosperidade e desenvolvimento, os chefes da independência, para aquietarem os espíritos inconformistas e para dar às populações o sentimento de estarem envolvidas numa grande tarefa, quiseram servir-se de Goa / 5 / para ensaiar o seu nacionalismo exacerbado e o seu anticolonialismo ressentido, além de que o «caso de Goa» seria um processo ideal para desviar a atenção do povo indiano, dos inúmeros problemas criados e irresolutos no subcontinente da Índia desde a independência.

O grande número de actos, alguns dos quais internacionalmente inúteis, mas espectaculares, que a Índia praticou não tem qualquer significado senão dentro do quadro de uma difícil política interna que não tem bases suficientemente sólidas.

3 – Quando, em 18 de Dezembro de 1961, se consumava a ocupaç6o militar de Goa e o mundo assistia a uma «agressão pacifista» com o consenso de alguns Estados directores do mundo moderno, pensaram muitos que o chamado «caso de Goa» estava terminado. Porém, perante a surpresa dos cépticos e a admiração e espanto dos derrotistas, verificou-se que era, paradoxalmente, a partir daquele dia que o «caso de Goa», do plano nacional, transportava-se para o plano internacional.

Perante a ocupação e domínio do estranho, os goeses recolheram-se dentro de si próprios porque não havia nem existia qualquer espécie de base para pactuar com o invasor. Os goeses, por isso, após os momentos iniciais da confusão de espírito, iniciaram a sua ofensiva ideológica.

Mas como é que se justifica essa ofensiva ideológica? Essa ofensiva só se justifica pelo facto de «Goa» ter criado, nos 400 anos da sua existência, uma paisagem cultural quase única na Índia e rigorosamente delimitada pela fronteira. E essa sua individualidade, ela deve-a a Portugal que revelou, muito particularmente em Goa, «a maneira inteiramente diferente da colonização dos povos latinos em comparação com a dos estados nórdicos».

A meditação do caso de Goa impõe-se, hoje, mais do que nunca, a todos quantos desejem projectar o génio das respectivas culturas sobre outros povos.

Goa constitui e oferece todas as condições para ser a mais poderosa arma ideológica contra o avanço dos movimentos anti-ocidentais, porque para ela estão voltados e atentos os olhos e os ouvidos da cristandade da Ásia, talvez mais por causa dos mortos do que por causa dos vivos.

Não importa a ocupação e o domínio estranho do território, porque Goa prolonga-se no mundo, para além da sua minúscula posição geográfica, através da cultura, de que são portadoras as «elites» goesas espalhadas pelo território nacional e pelo território estrangeiro, ocupando a cátedra, empunhando o báculo, exercendo as profissões liberais. E esta presença e prolongamento de Goa, através das comunidades goesas, em território estrangeiro, perante mais um serviço de Portugal à comunidade Ocidental, porque elas são, não só a voz, mas / 6 / também o exemplo de uma concepção de vida que se pretende jazer subsistir. É este, a nosso ver, um exemplo notável de energia, de serenidade, de coerência e de autenticidade que Goa deu e continuará a dar ao Mundo.

Porém, como é que se explica o êxito do enraizamento da cultura portuguesa em Goa?

Antes de mais, o êxito deve-se à autenticidade da acção portuguesa no Oriente, isto é, a afirmação naquelas paragens do que constitui realmente os valores ocidentais verdadeiros, o que nos levou ao apostolado cristão e nos deu um sentido de tolerância quase único; em segundo lugar, a independência da nossa acção, o que evitou que aparecêssemos sempre confundidos com outros no intuito de explorar e subjugar; em terceiro lugar, a ausência de preconceitos rácicos, o que nos levou à miscigenação e à criação de comunidades luso-locais distintas; finalmente, a capacidade de absorção e integração na vida portuguesa, do que Goa tinha a oferecer, o que suscitou o sentimento de uma colaboração bilateral em pé de igualdade, com benefícios nos dois sentidos.

E foi, por isso, que um erudito indiano, nada suspeito de parcialidade a favor do Português, afirmou que, «Goa, desde cedo se transformara em centro de formação simbioticamente luso tropical de europeus dispostos a darem suas vidas por aquela grande causa da cultura cristã no Oriente», e o célebre poeta R. Tagore referira-se a Goa e à sua cultura como sendo uma ponte entre o Ocidente e o Oriente.

A fraternidade e comunhão das raças, a fusão superadora de culturas, a nova criação de formas justas de convivência política, foram os ideais supremos de que os Portugueses se serviram para vencer todos os obstáculos.

Minhas senhoras e meus senhores!

Recordar os mortos é um dever moral que se impõe aos vivos. Mas, quando essas mortes constituem tragédia nacional, recordar as suas memórias é uma obrigação e um acto de justiça.

É no cumprimento dessa obrigação e desse acto de justiça elementar que estamos aqui reunidos.

Recordemos, por isso, os que tombaram no solo da Índia em defesa dos nobres ideais e não esqueçamos também os vivos que ficaram em Goa, onde continuam a afirmar, com as armas do espírito, a permanência indelével e eterno de Portugal e da sua cultura em Goa.

 

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09-06-2018