Acesso à hierarquia superior.

farol n.º 23 - mil novecentos e sessenta e seis ♦ sessenta e sete, pág. 25.

O MAR

Flor

O mar é belo, nem que cem vezes me afirmem o contrário. Quem ousará negar a beleza selvagem das ondas franjadas de espuma que, rebeldes, lutam contra os rochedos gastos de velhice e cansados de batalha infindável? As revoltadas despedaçam-se em milhares de pequenas gotas que são atiradas aos ares na fúria do embate. As ondas sacrificam-se, morrem, mas os rochedos, que teimam em não arredar pé, calados e quietos, são os que sofrem mais: vão sendo gastos a pouco e pouco, vão sentindo a sua massa desconjuntar-se mansamente, as angústias da queda fragorosa e da morte a penetrarem-nos. E, um dia, pedaços arrancados caem e são sepultados na imensidão branca, verde, azul, do mar enfurecido que brama atroadoramente. Tudo isto é espantosamente misterioso, e, por ser misterioso, é belo e maravilhoso.

Em contraste, a calma simples de mar que banha uma praia areosa, em dia de sol e de brisa leve. Afirmem-me que é feio, pouco ou nada interessante, o espectáculo das ondulações que nascem aqui e ali; das ondas recém-nascidas que correm em busca da praia e desaparecem na areia solta, mansamente, como quem não quer a coisa, como filhinhas que se acolhem e escondem no regaço da mãe. Esta parece ser beijada docemente pelo mar inteiro que voltou de longa viagem.

Ao pôr-do-sol, o mar é luminoso, a areia é domada, os rolos de espuma das ondas mortais tomam o aspecto dum arco-íris, com todas aquelas cores que se combinam e dão um tom avermelhado. Um rasto de fogo se estende na água, que parece arder lentamente, em direcção ao sol que se despede a custo, com lágrimas de sangue. Em breve irá banhar com a sua luz quente outros mares tão misteriosos como aquele de quem se separa.

E ao luar? O mar é ainda mais misterioso e doce. Um suave marulho se ergue daquela massa líquida e morna do calor do dia. Canto de sereias lendárias cujas escamas brilhantes reflectem a luz prateada da lua? Gemidos de antigos heróis do mar, de amorosos suicidas, que se lamentam e desfiam o seu rosário de saudades, saudades da terra tão próxima e ao mesmo tempo tão distante? Chamamento do mar acordado para a terra adormecida e inconsciente? Não sei. Sei apenas que sentada sobre a areia pálida à luz da lua, escutando aquele barulho contínuo e olhando a imensidão azul-escura, sulcada por um fio de prata que une a lua indiferente à água inquieta, sinto que uma paz suave se vai derramando gota a gota sobre o meu coração dolorosamente contraído sob as angústias de um dia que me soube a fel, dilatando-o e fazendo-me sentir em paz com Deus e com os homens.

 

página anterior início página seguinte

08-06-2018