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farol n.º 23 - mil novecentos e sessenta e seis ♦ sessenta e sete, págs. 17 e 18.

Despedida

Ana Maria da Silva Valente

VAIS partir. Podes crer que o sinto sinceramente. Esta partida significa o fim de uma amizade íntima que começava a brotar entre o meu e o teu coração. Lembras-te, por exemplo, de quando, sentada perto da janela, com o livro aberto no regaço, interrompias o estudo e me falavas dos teus problemas particulares, num tom confidencial que transformava a mais insignificante palavra num saco de mistérios. Era bom sentir que confiavas em mim, que vias na minha pessoa uma... – bem, não direi «amiga», porque tenho essa classificação como o maior elogio que alguém pode fazer a outrem; – direi antes que vias em mim uma rapariguinha simpática que te compreendia.

Falavas do teu irmão, dos desgostos que dava aos teus pais, das lágrimas que a sua rebeldia fazia correr dos olhos da tua mãe. Disseste-me até, se não me engano, que tiveste que a consolar várias vezes e que o teu pai sofria também muito, mas em silêncio, sem testemunhas.

Lembras-te de quando me disseste o nome daquele rapaz teu vizinho que te fazia corar, sempre que falava contigo? Ri-me de ti, chamei-te criança, como se eu fosse urna velhota com larga experiência da vida.

Podes crer que apreciei a confiança que depositaste em mim, que me senti francamente honrada com as tuas confidências. Vou lembrar-te com muita saudade, podes crer. E tu?

Lembrar-te-ás de mim?

Ou será que te ofendeste com as minhas brincadeiras?

Não me digas que as tomaste a sério... Tu conheces-me suficientemente bem para saberes que a vida, para mim, é urna brincadeira contínua: mesmo nos assuntos mais sérios eu vejo sempre algo de pitoresco, de aventuroso, de divertido.
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Preguei-te partidas?

Sim, é verdade, mas sabes que é próprio. Quando se vive em comunidade como nós, quatro jovens – quatro autênticos diabretes – reunidas num quarto... Tem de haver estas partidas da praxe, compreendes?

Tu vais começar vida nova, vais conhecer outras colegas, mas não acredito que nos esqueças, que me esqueças.

Sabes? Ao ver-te partir sinto que levas um pouquinho da minha mocidade, do meu tempo de estudante. Sim, porque tu fizeste parte desse tempo maravilhoso e, um dia, ao recordá-lo, tu serás um episódio, um desvio do curso normal do dia a dia.

Com a tua partida esse episódio acaba e nunca tão bem como agora soube distinguir o fim de uma das pequenas histórias que compõem a minha vida.

Desculpa teres perdido tempo, por minha causa. Perdoa tudo o que em mim te tenha desagradado durante estes meses de vida em comum.

Por mim agradeço-te todas as horas agradáveis que me proporcionaste, quer em conversas amenas, quer em brincadeiras e risotas.

Só peço a Deus que recordes com tanta saudade como eu te recordarei e que eu seja na tua vida um episódio agradável.

«Até sempre»: virás fazer-me muitas visitas, não é verdade? Sabes que espero notícias tuas e que quero ver-te de vez em quando.

«Até nunca mais»: tu não voltarás a ser a companheira, a futura amiga talvez, que foste até a este momento e que serias se não tivesses tomado a decisão de partir.

 

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08-06-2018