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farol n.º 14 - mil novecentos e sessenta e quatro ♦ sessenta e cinco, págs. 8 e 9.

Impressões de Férias

Armanda Oliveira
7.° ano de Letras


DEPOIS da excitação intensa dos primeiros dias de aulas, de curiosidade natural pelos novos professores, da alegria de possuirmos e folhearmos compêndios desconhecidos, os dias voltam à mesma cadência monótona e perdem o sabor de novidade.

Descobrimos então que aquele livro, que tinha umas fotografias maravilhosas, trata dum assunto que detestemos, que os professores não são como imaginámos, que a colega que está ao nosso lado é carrancuda e que estudar horas seguidas não é tão fácil como se pensava!

Depois de ter chegado a todas estas conclusões, levanto o olhar do livro aberto e fixo-o em indeterminado ponto do espaço; apoio a cabeça nas mãos e recordo os dias felizes de férias....

Lembro-me que há dois meses estava na praia e há um mês no campo. Começam então a desfilar no «écran» do meu pensamento rostos conhecidos, lugares por onde passei, palavras soltas, frases... Reconstituo cenas cómicas e chego a rir-me com tanta vontade como o fiz nessa altura.

Umas férias de quatro meses deixam-nos demasiadas impressões e o espírito voa de umas para as outras com tal rapidez que é quase impossível ordená-las. Além disso, associamos constantemente pormenores sem interesse que chegam a fazer perder o fio à meada.

Acho melhor, portanto, falar das impressões dum dia de férias e, para lhes dar um maior sentido de realidade, recorro ao meu «Diário», do qual transcrevo uma página:

Setembro de 1964

Sabe bem acordar cedo e ver uma nesga de sol a brincar / 9 / com o espelho e a atravessar a grande jarra de cristal cheia de flores bonitas.

A luz decomposta projecta-se na parede, deixando um maravilhoso arco-íris.

Abro a janela de par em par e fico tempo esquecida a olhar a paisagem que se reveste dum encanto novo em cada dia que passa.

É a visão encantadora duma aldeia perdida entre os montes, cujas casas branquinhas se destacam num fundo de verdura, constituída por pinheiros, ao longe, depois por outras espécies de árvores e ainda por vinhedos carregados de enormes uvas doiradas ou negras.

Da encosta chega o tilintar dos rebanhos dispersos pelas serranias ao qual se juntam as vozes dos crianças que brincam às rodas.

Passam carros de bois, carregadinhos de espigas doiradas, fazendo uma arrepiante chiadeira. Há vida por toda a parte, uma vida que se transmite a mim própria e me obriga a actuar.

Visto a velha saia das flores, enfio umas alpercatas quase gastas e ponho um grande chapéu de abas largos. Olho para o espelho e sorrio... A minha transformação em camponesa é quase perfeita!

Pego num cestinha de verga e, com a minha amiga que é um pouco mais nova que eu, vou colher fruta para a quinta, tarefa acho deliciosa.

É preciso subir às árvores e trepar por escadas, para chegar às vinhas mais altas, mas tudo isto eu faço com agrado.

A tarde é passada à sombra de grandes carvalhos. É este o meu sítio preferido, porque há silêncio e tranquilidade e eu povoo este ambiente com as personagens tiradas do «Paulo e Virgínia» que estou a ler.

Fico aqui, horas seguidas, até ouvir uma ou outra nota caída da flauta do pastor, que regressa com o rebanho ao entardecer.

Volto para casa e ouço os meus discos preferidos. À noite, sentada nas escadas de pedra, ouvia deliciada a minha amiga tocar viola, quando nos vieram convidar para uma desfolhada.

Fiquei radiante. Cantei e dancei até ficar cansada, na eira só iluminada por um pálido luar e um pequeno bico de gás...

Com as últimas notas da viola do Ti João, toda a serra mergulhou no silêncio da noite.

E foram estas as impressões dum dia de férias, passadas numa aldeia minhota, onde tudo era duma simplicidade chocante e as pessoas viviam sem loucas ambições, perto do céu, das estrelas. de Deus...

 

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08-06-2018