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farol n.º 13 - mil novecentos e sessenta e três ♦ sessenta e quatro, págs. 24 e 25.

O Abandonado

Estava-se num daqueles dias de Verão, em que o crepúsculo vespertino tem um realce inigualável: uns tons róseos, misturados com tonalidades purpurinas, davam ao ambiente um ar solene. Parecia que a Natureza, depois de um dia de trabalho, se associava à vida da aldeia próxima, apresentando-se pensadora, cansada. Já muitos poetas tentaram descrever este quadro singelo, mas a pena recusou-se e tornou-se incapaz de reproduzir na folha de papel as sensações que iam na alma dos poetas... Já muitos pintores tentaram transportar para a tela aqueles pormenores que animam o horizonte ao pôr do sol; também estes não conseguiram nada de positivo... tudo muito vago.

Quem terá, então. podido figurá-lo? Só um Poeta e Pintor que traçou as suas linhas no principio da Existência. Hoje, ninguém é capaz de o fazer.

Pois bem. Foi num poente assim que notei a figura de um homem sentado numa pedra, perto de um bosque. A vida parara e, lá ao longe, o Sol apresentava o seu adeus àquela terra laboriosa.

Também a vida parara para aquele homem... ele não vivia, sofria. Que figura austera! Dir-se-ia o inspirador de Rodin para compor o célebre «Penseur». Aquele homem, tal como os mais, tinha o seu modo de vida, os seus problemas psicológicos. Mais do que isso: era um pobre louco, sem casa, sem família, sem amigos... sozinho na Terra...

Perguntei a alguém, por curiosidade, como é que se tornou louco. Responderam-me: foi por causa de ter perdido a família num incêndio. Isto aconteceu já há alguns anos: não se sabe como, mas um forte incêndio levou-lhe tudo o que tinha de mais querido – a esposa e os filhos; quando chegou a casa e deparou com as ruínas ainda fumegantes, foi vítima de um ataque de loucura e fugiu para longe, para esquecer aquele trágico acontecimento.

Desde esse dia nunca mais trabalhou. Vive de esmolas e passa o dia sentado naquele penedo ou no interior do bosque próximo. Não faz mal a ninguém e, pelo contrário, tem medo de tudo e de todos. Aquelas rugas profundas marcadas na face são sulcos de / 25 / muitas lágrimas vertidas ao clarão da Lua, tendo como companheira inevitável a noite.
Aproximei-me; não me viu. Uma profunda tristeza invadia o seu rosto; as mãos calejadas e ossudas repousavam metalicamente nos joelhos.

De repente estremeceu. Levantou a cabeça, viu-me, e correu desenfreadamente em direcção à floresta, onde se entranhou e desapareceu. Voltei para casa, não sem me lembrar que, enquanto eu tinha uma casa e família, aquele desgraçado vivia debaixo do tecto sereno do céu, enfrentando as forças dos elementos, abandonado e só.

 

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08-06-2018