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farol n.º 10 - mil novecentos e sessenta e três ♦ sessenta e quatro, págs. 4 e 5.

Naquela noite de sonho

A. Reis


LÚCIO era um rapazito sem história e nada em si era de notar, salvo um olhar profundo, sonhador. Habitava lá nos subúrbios duma grande cidade, numa casita de paredes já tão carcomidas que mais parecia um monte de ruínas. Seus pais eram extremamente pobres; a vida de Lúcio era vaguear ao acaso pela grande capital.

A chuva caía de leve, miudinha, mansa e fria. Cosido com as paredes no vão intuito de não se molhar, ele lá ia, descalço, as mãozitas roxas do frio nos bolsos duma velha e ensebada jaqueta, o cabelo revolto de molhado; o seu olhar sonhador era agora distraído. Ia sem rumo, como sempre.

– Eh! Lúcio... – o rapaz ficou pasmado; nunca ouvira falar em tal!...

– Eh! Mãezinha! Mãezinha!, – ia chamando Lúcio enquanto empurrava a tosca porta chapeada de ferrugentas latas – é verdade que o Menino Jesus vem pôr uma prenda no sapato, esta noite?

A Mãe medira o alcance da pergunta, mas, como era pobre...

– Sim, filho! é verdade! Mas é só aos meninos que se portam bem... e Lúcio não se havia portado bem, ultimamente; o Tónio da outra rua...

– Mas, mãezinha...

*

O velho sapato lá ficou, na esperança de uma prenda do Menino. Lúcio deitara-se. Adormeceu, sonhou...

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«Como era linda a prenda que o Menino Deus lhe dera. Oh! como ele gostaria de ir ter com Ele e brincar com ele! Mas não interessava. À luz do sol brincar com ele, era todo o seu enlevo; como o Menino fora bom! E Lúcio agora portar-se-ia melhor!

*

Quem de tarde ouvira o mar não duvidaria da veracidade das suas ameaças.

Trovões longínquos iam-se ouvindo mais perto e perto; o vento que começara de mansinho era agora ciclónico; a chuva mansa e leve era agora a catadupas.

Uma rajada mais forte e estava consumada a tragédia: as toscas paredes não resistiram.

– Lúcio! Lúcio – gritava aflitiva a pobre mãe. – Lúcio! – a sua voz era cava; adivinhando o passado desmaiou.

Pobre mãe, pobre coração! Fora duro o golpe! Arreliava-a por vezes, mas ela era mãe e Lúcio era o seu filho...

Mãos piedosas alumiaram o rosto do miúdo; a morte colhera-o no melhor do seu sonho... e ele lá ficou na sala dos brinquedos do Menino Deus. Talvez por isso ele debaixo dum montão de pedras, sorria, feliz...

 

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08-06-2018