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farol n.º 8 - mil novecentos e sessenta e dois ♦ sessenta e três, págs. 16 a 19.

Era dia de Natal...

Carlos Moya Nunes de Silva
(6.º ano)


GOSTO de falar com os meus amigos, mas gosto ainda mais de estar só, as luzes apagadas, enquanto olho a lenha que arde no fogão.

É então que me acena à lembrança, tanta gente para quem o Natal não é a festa de família, da alegria e da abundância...

Eles não têm alegria, porque aquele dia é de incerteza e angústia como todos os outros aliás.

Nas suas míseras casas ninguém vê ramos de azevinho, nem pinhas douradas, nem velas encarnadas. Que bela ideia!

NATAL...

Está um dia fosco de neblina incerta e triste. Para lá, as árvores despidas não bolem.

A vida parou. As nuvens andam a esta hora de rastos pelas encostas pedregosas dos montes. Não se ouve um grito. Tudo na natureza se concentra e sonha.

Há no entanto um grande rio revolto que nunca cessa de correr...

Natal dos pobres! Natal dos pobres!

Os pobres pensam que existem seres ainda mais pobres, lares desamparados, onde nem o lume se acende; cuidam numa velhinha, que a essa mesma hora, pensa, abandonada e sozinha, ao pé de brasas extintas, no filho doente, num filho ausente...

Há cabanas nuas, lares rotos, almas mais gélidas que a neve.

*

Deus esmaga o barro de que somos feitos para construir alguma coisa de extraordinário: mundos, vidas, Morte – Poder infinito que tudo atravessa.

De que precisam os poetas para fazerem uma obra de génio?

De dor. O sofrimento cria. Recordam-se das figuras de mármore, para sempre debruçadas sobre os túmulos antigos?
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O mar que vem pela rosácea tocando-as, dá-lhes uma vida de sonho. Pois a dor fio a fio, como o mar, dá vida ao sonho.

Com as simples e secas letras do abecedário, vou edificar qualquer coisa de vago e indeterminado: árvores vão tombar de emoção; de tudo o que existe sai uma prodigiosa alma etérea e viva, que me envolve e toca, e que fala!

Que vai falar!...

*

O Gato-pingado... Ei-lo que sobe. Cada passo me lembra uma pazada de terra. É soturno este homem, esguio e magro, com o chapéu alto embrulhado no lenço do rapé e a casaca dobrada no braço. Nunca fala.

Estou mesmo em dizer que não pensa, este avejão que só sai para os enterros. Deve ser mau, deve ser duro; nunca decerto chorou. Os garotos apedrejam-no quando passa pela rua, esguio, vesgo, de chapéu alto e casaca. Aposto que, quando arrancam das casas os caixões, como quem arranca o coração dum ser, ao ouvir gritos, tem o riso interior de quem está farto de viver, arredado e humilhado...

Gato-pingado! Gato-pingado! Vive de lágrimas, sustenta-se de choros. E quando vai, de tacha acesa, esguio, a galgar atrás dum carro funerário, em que irá ele a pensar, esbaforido e triste?...

*

Era dia de Natal...

A casa é trágica, de tectos negros, sumidouros.

Nela vivia Gato-pingado e sua filha Amabova:

– Pai, não me sinto bem, não sei o que tenho.

– Não é nada, desgraçada. Trabalha, não sejas preguiçosa.

E apertou-a nas grandes mãos, mas ela nem sequer gritou. Era uma coisa já sem forças, abandonada.

Gato-pingado, sai.

Amabova, lívida, com o vestido roto, com os pés metidos nos sapatos do pai, sem meias, roxos, dirige-se para a sua cama sem forças e deita-se.

Moldado pelo lençol, um corpo ressequido e no silêncio da espera, ouve-se só a Rala aflita, o estertor, a ânsia de quem quer ainda vida e a quem a morte engana – mais perto! mais perto!...

Pela sua triste cara corre um suor de aflição.

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A rala enrouquece, mais aguda, como se a morte fosse apertando – mais perto! mais perto!...

Amabova abre os olhos enormes na cara branca e imaterializada.

A vida extingue-se-lhe como a última gota dum fio de água que acaba de correr.

Os sinos tocam, é dia de Natal – Jesus desceu à terra.

A ventania açouta o casarão, e passa levando poeira morta, ais, para outro mundo ignoto.

*

– Ama! Ama! Onde estás?

– Responde senão é pior.

– Ah! estás a dormir! levanta-te.

Ah! não te levantas, então levanto-te eu...

O quê! Ama! minha filha, responde eu amo-te... responde...

Na sua frente aparece uma rapariguinha, branca, descalça, estendendo-lhe os braços.

– Ei-la! Ei-la! .. – Filha, volta. Corre, mas só encontra a parede húmida do quarto...

– Fui eu que te criei, és minha!

– Oh! que palavras te hei-de dizer?...

– Olha: eu sinto-me distante de ti. Gostava tanto de sentir a tua mão pousada na minha cabeça, tanto! Olha!...

Através da janela uma figura se constrói de luar, na sombra opaca uma tremulina toma forma.

Juntam-se os fios de mar, amontoam-se névoas e alguma coisa treme, prestes a fugir – uma tumba, e um pedaço de homem, esguio, vesgo, que com uma pá, deita pazadas de terra sobre uma casa de quatro tábuas forradas.

Gato-pingado corre e tudo se esvai... só a sombra resta, e um ruído de gotas de mar tombando sobre a janela.

Ele chora e diz:

– Filha, o meu ofício era este, tinha que o fazer, não houve ninguém que te quisesse enterrar, cada pá de terra que deitei sobre ti, foi um pouco do meu corpo que caiu. Filha, perdoa-me, mas eu tinha que te enterrar, eu amo-te...

Gato-pingado, na noite branca e calada, sente-a aproximar-se e olhá-lo muito tempo.

– Minha alma!

Nem um murmúrio.

A claridade da lua misteriosa diluía a terra em coisas. A sombra opaca tornava-se mais espessa e funda.

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A certas horas o silêncio estremecia, num ai baixinho, triste. Era a criação!

A alma da sombra acordava. Ei-la! Ei-la!...

Minha vida!

Vi-a perfeitamente. O oval do rosto pálido, os negros elos compridos, inteiramente feitos de sonho e de lágrimas.

Só os olhos se perdiam em duas sombras, cega talvez de tanto ter chorado.

– Não fujas!

Gato-pingado correu, e logo a imagem se esvaiu. Na sombra funda, na sombra opaca, restavam apenas manchas vagas e dispersas, mar desfeito... Apalpou a terra. Havia um ruído ainda.

Pelo chão, corria um fio de água ou um fio de choro...

– Meu amor! Meu amor!

*

Da matéria tem nascido à custa de gritos, de fibras torcidas, o imorredoiro espírito. Através das idades ele se criou. Através da dor veio surgindo. A dor é a primavera da vida. Para se entrar na vida, ou para se entrar na morte, há sempre gritos. A dor ara o Céu cheio de estrelas e os seres humildes.

De que se cria tudo isto?

Quem é que se alimenta no infinito?

Destes seres espezinhados, revolvidos, nascem as coisas eternas – húmus, amálgama, protoplasma, espírito lácteo, com que se constroem mundos. Na vala comum, os seus corpos cansados de sofrer, são a seiva da vida: as árvores, o pão, as formas, a seiva esplendente. No infinito, é da sua dor que se sustenta Deus.

*

Natal dos pobres! Natal dos pobres! Natal amargo dos que sofrem, natal sóbrio dos que não têm pão e se juntam  friorentos em torno dum lume que não aquece; natal dos seres que a desgraça usou... O vinho enregela, o pão é duro, mas resta ainda este lume que jamais se apaga: – Amanhã! Amanhã!...

...A lenha arde ainda e o natal está próximo... Lá fora chove, e Cristo passa escondido pelos farrapos do pobre que ali vai...

E eu?

 

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06-06-2018