Acesso à hierarquia superior.

farol n.º 5 - mil novecentos e cinquenta e nove ♦ sessenta, págs. 25 a 30.

Perfil do Infante,

por Oliveira Martins

Crisanta Augusta Rosa Soares Carinha
(7.° Ano)


PARA inteira compreensão da figura do Infante D. Henrique na obra histórica de Oliveira Martins, «Os Filhos de D. João I», não se poderá desprezar, de forma alguma, a atmosfera literária que envolveu o nosso escritor.

É sabido que surgira a corrente realista como reacção aos exageros e extravagâncias sentimentais em que haviam caído os ultra-românticos. Assim, a geração dos novos escritores teria como único objectivo a realidade material e a vida sensível, orientando os seus trabalhos com base na frieza discursiva da razão, encetando uma obra demolidora e de extrema severidade crítica. Apresentam-nos, desta forma, a faceta mais grosseira e menos edificante da natureza e do homem, este em luta constante entre tendências superiores e inferiores, à mercê do instinto a superar a razão, sendo colocada a moral em segundo plano, incompreendida e espezinhada, posto Que em quase todos estes escritores haja uma pseudo-intenção didáctica.

O homem, porém, não é só um ser materialista. Nele existe algo que o distingue dos outros animais, a sua alma, os seus sentimentos, o seu tão rico mundo subjectivo. Não nos admira, / 26 / portanto, que esta atitude pessimista com que os realistas encaram a natureza e a humanidade, esta actividade destrutiva, não satisfizesse as novas gerações e até mesmo os próprios adeptos. É então que já no final do século XIX, esta orientação literária sofre alterações. O homem sente-se cansado da sua preocupação destruidora, a qual não é compensada por novas criações; principia a olhar os homens e a natureza com mais optimismo, torna-se mais transigente, vê que, para além do árido materialismo existe o tão belo mundo ideal. E assim toma uma atitude, em certos aspectos, quase oposta à que seguia, olha mais para o alto, para o espírito e começa a desprezar o sensível.

Surge uma mentalidade renovadora, da qual constituem flagrante exemplo algumas obras de escritores participantes de os «Vencidos da Vida» ou do «Grupo dos Cinco»: Antero de Quental, Ramalho Ortigão, Guerra Junqueiro, Eça de Queirós e Oliveira Martins. São estes grandes espíritos que, segundo Feliciano Ramos, «atenuam o seu azedume em face dos homens e da natureza; tornam-se mais complacentes; prestam mais atenção ao sentimento (...), numa palavra, alcançam a serenidade intelectual dos espíritos superiores». As últimas obras destes escritores exprimem o declínio do naturalismo e o alvorecer da nova literatura espiritualizante e idealista, a caminho da literatura simbolista. É outra a atitude de Ramalho Ortigão nas «Últimas Farpas» e no «Culto da Arte em Portugal». Guerra Junqueiro, em «Os Simples», embebe-se em nacionalismo estético, o mesmo acontecendo a Eça de Queirós na «Correspondência de Fradique Mendes», na «Cidade e as Serras» e nas «Últimas Páginas». Oliveira Martins debruçar-se-á sobre Nuno Álvares e «Os Filhos de D. João I».

Encontramos, pois, a obra de que nos vamos ocupar integrada nesta corrente idealista e construtiva. Na verdade, o autor, quase esquece em «Os Filhos de D. João I» o materialismo histórico, para dar a primazia à arte, aos estudos psicológicos. Dá-nos uma visão geral e em certos aspectos pormenorizada da dinastia de Avis, empregando poderosos recursos de expressão, prosa descritiva, colorida e animada, embora a sua visão seja ainda algo prejudicada pela preocupação de emprego de processos realistas. A sua história não tem como única finalidade a narração de factos sem ligação, mas sim o contribuir para a formação moral do povo português, pelo conhecimento da vida virtuosa do passado. Já não destrói totalmente, já não deita por terra, mercê da sua crítica acérrima, o que é do seu país. Vai até ao passado e de lá arranca figuras de retábulo, fazendo-as / 27 / renascer, viver, para exemplo do futuro. É por isso que não nos devemos admirar ao ver as suas figuras apresentadas sob um ângulo ou outro mais vincado, com prejuízo talvez da sua verdade humana. É que a ele só lhe interessa o perfil moral das suas personagens. Oliveira Martins adultera frequentemente os factos, atribuindo-lhes uma significação que estão longe de possuir, emprestando muito do seu carácter e sensibilidade às personagens. Isto valoriza o lado literário da sua obra, embora a prejudique científica e historicamente. Ao descrever-nos a veneranda e rígida figura do Infante D. Henrique, Oliveira Martins, entusiasmado pelas afinidades de carácter que encontra nesta personagem com a sua própria pessoa, esquece-se talvez que está a descrever outrem, dando-nos quase um auto-retrato psicológico. É certo que há um grande paralelismo entre a sua vida e a do Infante, pois ambos são seres onde domina uma vontade impaciente que não sofre que qualquer realização seja protelada. São almas que tudo calcam, que se sacrificam até ao âmago das suas forças, para que uma ideia sonhada se torne uma realidade concreta. Desde muito jovem que Martins foi obrigado a enfrentar a dura realidade da vida, tomando a seu cargo os irmãos e mãe desamparados pela morte do pai. Interrompe forçadamente os estudos e revela-se um trabalhador dotado de grande maleabilidade e enorme capacidade de trabalho. No entanto a vida intelectual nunca o deixou de interessar, sobretudo os estudos históricos, não impedindo ainda este interesse que se tivesse tornado um excelente perito em minas e caminhos de ferro, onde operou modificações com grande êxito.

O nosso escritor empresta muito da sua personalidade às personagens, orientando a sua obra com um fim pedagógico e moralizante. As personagens são, portanto, símbolos que a humanidade deve seguir. Por isso, encontrou na dinastia de Avis os mais altos e valorosos símbolos, os quais trata com desvelado carinho e escrúpulo, desde a mãe modelo, D. Filipa de Lencastre, até D. Duarte, que ele apresenta vítima da falta de energia e joguete de incertezas. É todavia a austera figura do Infante D. Henrique a que mais lhe agrada e a que melhor retrata quer física quer moralmente. Nela se demora, nela, melhor diríamos, se enamora, como se contemplasse a sua própria imagem voluntariosa num espelho.

Primeiro, o traço físico: «alto e corpulento, de largos membros, com a pele tostada pelos sais e ventanias, os cabelos negros, espessos, rijos e empinados, um bigode farto, negro também e hirsuto, este infante não era belo; pelo contrário. Faltava-lhe / 28 / na fisionomia o encanto da bondade sem o qual não há formosura. A dureza do seu olhar era antipática. Descendia directamente do pai, no qual se vira um exemplo acabado do temperamento enérgico e tenaz, sem poesia, que sabe aliar a violência à astúcia, quando o propósito formado o reclama para atingir um fim. A vontade manda exclusivamente em homens destes, pouco dados à contemplação». É assim que do bem delineado perfil do nobre Infante ele se vai estender para a sua obra: «a simpatia e a grandeza dos homens, como foi o infante D. Henrique, não está propriamente, pois, no carácter ou na individualidade: está na empresa a que se devotaram. Devemos-lhe, nós, Portugueses, uma segunda pátria; e deve-lhe a civilização europeia
uma das suas três ou quatro conquistas fundamentais. É isto que faz dele um herói na mais nobre acepção da palavra». Porque o deseja esculpir no austero material da vontade, os traços que lhe imprime são duros, hirtos, quase desumanos. Daqui o retrato moral: casto, abstémio, soldado e sacerdote dessa religião que despontava (..), a dureza ingénita do carácter do Infante encontrava nas visões do seu plano um objecto e uma sanção tão profunda (..,) que tinha alucinações de génio, julgando proceder por mandados da divindade. Esta fé e esta inclinação de génio (...) deviam concorrer para acentuar ainda mais o carácter reservado do Infante. À primeira vista, o seu aspecto era temeroso, segundo diziam os que o tratavam, e, arrebatado em sanha, o semblante tornava-se muito esquivo (...).

Mas o Infante não era expansivamente colérico, não tinha acessos nem fúrias: era, pelo contrário, esquivo, isto é, reservado. Amodorrava, franzia a testa, empinava as sobrancelhas e com a palavra mansa e gesto comedido mandava passear quem o desgostava: «Dou-vos a Deus, sejais de boa ventura!». Nunca foi avaro e compreende-se, porque a sua paixão tinha objecto diverso (...). Esse carácter fatídico e assustador vinha da alma, que lhe devorava o peito, enleando-lhe não a vontade, mas sim as manifestações externas dela, nas relações com os seus semelhantes. Trazia na alma um incêndio e por isso mesmo o exterior era gelado (...) Consumia os dias, velava as noites, estudando, indagando, meditando (...)».

Para melhor e mais amplo conhecimento desta figura singular e para exemplificação das virtudes acima referidas, eis passagens dolorosas e difíceis da sua vida. Assim, logo após a tomada de Ceuta, D. Henrique idealizou a conquista de Tânger, praça forte, bem defendida pela moirama. Expôs esse plano ao pai, então já velho, plano esse que foi rejeitado, atendendo à pobreza / 29 / da nação e à potente defesa de Tânger. Mas o Infante não era homem que desistisse à primeira contrariedade. respeitando a velhice e vontade do pai, não mais o atormenta com pedidos; mas, após a morte deste, cai como milhafre esfaimado sobre D. Duarte. Este, tal como o pai, opõe-lhe o seu veto. A nação também se sente fatigada e como que tem o pressentimento da catástrofe. D. Henrique, porém, não desanima facilmente. Julga-se inspirado por Deus para a realização deste feito, luta contra o rei, contra o povo e encontra o ponto vulnerável, D. Leonor, esposa de D. Duarte, que está para ser mãe. Sabe que o rei nada nega à esposa e sobretudo nesta ocasião. É dona Leonor a sua nova vítima. Esta está de acordo com os seus planos e promete interceder. D. Duarte cai na armadilha e a autorização é dada, embora contra sua vontade. Os preparativos são iniciados. Tudo parece adverso à empresa; paira no ar um pressentimento de tragédia, de catástrofe. Mas D. Henrique está cego, está obcecado pela ideia fixa da tomada de Tânger. E as naus partem para o seu fatal destino. Após a derrota esmagadora e o cativeiro de D. Fernando, a D. Henrique «cosiam-no remorsos como facadas ». E é então que, «desenganado por fim e vergando sob o peso da desgraça, veio ao Algarve enterrar-se na sua Tebaida de Sagres, a engolir as lágrimas de desespero e raiva, não obstante tão cruéis infortúnios não o abandonarem. Enlevado na sua ambição, o Infante esquecia o luto e a vergonha pela esperança de prear de novo a caça que voara». E sempre forte e tenaz propõe uma segunda expedição a seu irmão. Este chega a duvidar da integridade mental do desvairado Infante. Uma segunda expedição seria nova catástrofe e D. Duarte tem a consciência nítida da gravidade da resolução». Outro homem, por tal forma vítima da fatalidade, bateria contrito nos peitos (...) Ele não. Tinha a energia animal preponderante, e oração, penitência, contemplação e piedade, tudo isso transformava em trabalho ardente. Não se escondera em Sagres para gemer, passivo a inclemência da sorte: fugira para lá, porque a desforra do mundo inimigo havia de tirá-la, persistindo no seu plano». Enceta, assim, a sua grandiosa obra de mostrar ao mundo novos mundos, erguendo bem alto o nome de Portugal.

É talvez um esboço demasiado rígido, duro em excesso e não muito certo, mas este exemplo de vontade parecia a Oliveira Martins oportuno, para o momento político do final do século XIX.

Que se volvesse o olhar para essa «Ínclita Geração» e que lá se colhessem lições proveitosas para o presente e para o futuro.

Há um pouco de exagero, sem dúvida, na reconstituição desta figura singular. Oliveira Martins idealizou nela o tipo de / 30 / homem de vontade inabalável, feroz, imperativa. É assim que nos apresenta o Infante. Não será talvez a verdade histórica, mas nos principais traços há uma verdade simbolista que dá grandeza à escura silhueta que do alto de Sagres, ia rasgando um Portugal maior. É desta forma que Oliveira Martins é um apologista da «Ínclita Geração», como Fernão Lopes e Zurara o foram. O seu estilo assemelha-se muito ao do primeiro escritor, assim como se lhe assemelha na maneira carinhosa como trata os infantes. No entanto, enquanto aqueles dois historiadores põem em relevo nas qualidades dos retratados, tendo em mira uma recompensa, pois foram seus contemporâneos, Oliveira Martins exalta-os o mais desinteressadamente, movido só pela fascinação que lhe causou esta geração sublime, à qual devemos, em grande parte, o prestígio alcançado pelo nome de Portugal.

 

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06-06-2018