Retalhos das Memórias de um ex-Combatente


Rendição

Chegou o mês de Maio de 1963. Parece que vamos ser rendidos, seguindo para o Grafanil onde ficaremos “operacionais”. É mais perigoso, pois iremos para os locais onde houver problemas e cujo terreno nos é completamente desconhecido. Ao menos aqui já sabemos a terra que pisamos. Pensamentos estranhos estes, pois só estamos bem onde não estamos, ou onde deixaremos de estar!

Finalmente esse dia chegou. Foi pela tardinha. A nova Companhia foi recebida com alegria à entrada do acampamento. Vinham cansados da viagem. Arrumaram as viaturas civis que os transportaram e antes do cair da noite estávamos todos a jantar.

Finda a refeição, o pessoal arrumou-se conforme pode. Por não haver camas disponíveis para todos, os nossos novos companheiros foram distribuídos pelas casernas, ficando uns no chão e os outros por onde se puderam desenrascar.

 

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A chegada dos substitutos

 

Na camarata dos Sargentos iam aparecendo os nossos substitutos. Atiravam a mochila para qualquer lado, descorçoados, e sentavam-se à mesa tentando estabelecer conversa.

A nossa alegria entristecia-os, e nós entendíamos bem esse estado de espírito. Chegar a um sítio destes não é alegria para ninguém. Mesmo assim estavam cheios de sorte. Já tinham um aquartelamento pronto a habitar, enquanto nós tivemos de o construir a partir de uma casa abandonada e a cair, envolta de capim.

Tentando amenizar o ambiente, estabeleci conversa com alguns que me pareciam mais em “baixo”. Não se pergunta a um homem com a moral destroçada de onde é. Isso seria pior ainda. Conversámos sobre as condições do acampamento, que conhecimento tinha da zona, e esses esclarecimentos foram-lhes prestados. Ficavam pensativos.

– Vocês não têm de que se queixar! Querem ver?

E fui à minha mala, donde tirei um punhado de fotografias.

– Vejam esta. Foi no dia em que chegámos. Tivemos que descapinar para arranjar espaço onde montar as tendas. Nesta, somos nós a construir as casernas. Os adobes eram feitos da terra barrenta que, depois de amassada, era posta em “formas” onde secava. E esta... e esta... Como vêem, vocês já encontraram a papinha toda feita! Faltam só as operações…

– E estas fotos, de quem são estas fotos? – Perguntou um dos “maçaricos”.

Olhei. Eu não queria ter trazido aquelas fotos mas elas ali estavam. São as dos nossos companheiros mortos pelas minas e que estão sepultados em São Salvador.

E continuámos em conversa. Quiseram saber como era aquilo das minas, como poderiam ser evitadas, onde havia mais probabilidade de elas serem montadas!

Apercebemo-nos que sabiam que, naquela zona, existiam muitas probabilidades de eles as pisarem. Haviam sido informados enquanto estiveram no Grafanil, muito por alto, da zona que iriam ocupar. Mas ao fazerem perguntas era-lhes respondido que as tropas que iam substituir lhes dariam mais pormenores! Imaginei que entre os oficiais e os soldados o assunto seria semelhante…

Agora passaríamos a fazer operações conjuntas, pelotão com pelotão.

O dia seguinte foi de descontracção. Alguns dos homens que nos vieram render foram com o nosso pessoal à água, para saber o local e as precauções que era necessário tomar com a segurança.


Marco Geodésico

Calhou ao nosso pelotão a primeira saída com os “maçaricos”, já comandados pelo Capitão da nova companhia, jovem oficial de carreira. Ficámos espantados; o nosso Capitão nunca saiu em operações de pelotão!

Quando foi possível, voltámos a conversar com os “maçaricos”. A sua presença ali era uma lufada de ar fresco. As conversas eram diferentes das que tínhamos entre nós.

No dia seguinte foi a operação de reconhecimento, com o novo pessoal.

Partimos de manhã. Era ir até ao marco geodésico, a pé. Seriam cerca duas horas de caminhada para cada lado. Saímos do acampamento com os pelotões lado-a-lado, um por cada trilho deixado pelas viaturas que por ali haviam passado pela “estrada” que ia para a Buela.

A manhã estava relativamente fresca. Íamos conversando e indicando os locais propícios à montagem de minas anti-carro. Passado um bom bocado, deixámos a estrada de Buela e encaminhámo-nos para a picada que vai dar ao marco geodésico, para onde só se podia ir em fila indiana.

– É pá, olha p’ra trás! – Disse ao cabo Pombal.

Eram dois pelotões – cerca de sessenta homens – em fila indiana. Pareceu-nos um mundo de gente! Tentei tirar uma fotografia. Não valia a pena. Teria que me desviar muito para dar ideia do comprimento da coluna.

Chegámos ao nosso destino. Todo o pessoal se queria empoleirar no marco. Então, aproveitei a ocasião e tirei umas fotos. Os “maçaricos” estavam encantados com a vista que dali se desfrutava. O marco estava instalado num alto onde acabava a serra. Em baixo, muito em baixo, ficava a mata. Só se viam as copas das árvores.

Sempre gostei de admirar este panorama, até porque o capim nesta zona é rasteiro e a possibilidade de uma emboscada é remota. Mas uma morteirada vinda da mata, podia muito bem acontecer. Aquele aglomerado de pessoal junto ao monumento, pode tornar-se muito perigoso. Às vezes um descuido pode ser a morte do artista...

O Capitão da companhia que nos ia substituir era um indivíduo de pouco físico, magro e nervoso o que na circunstância nos pareceu normal. Pretendeu mostrar “serviço” e seguiu com o seu pelotão em direcção à mata que ficava umas centenas de metros abaixo.

– Vá descansado que nós aqui de cima fazemos a vossa segurança – diz-lhe o Alferes Miranda, em ar de gozo.

Conhecíamos bem o terreno e sabíamos que descer, até a rebolar se descia, o pior era subir naquele terreno íngreme. Uma vez que o fizemos tivemos de nos servir do capim para nos segurarmos. Enfim, com a experiência eles também vão aprender!

Passado um grande bocado de espera, chegou o Capitão à frente dos seus homens. Vinham cansados e suados. Mal chegavam junto de nós punham a G3 de lado e alguns despiam os casacos. Notava-se-lhes no corpo as arranhadelas e vestígios de sangue. Embora sabendo do que se tratava, perguntei a um soldado:

– É pá, o que foi isso?!

– Ó meu Furriel, foi nas silvas, lá em baixo.

Nós conhecíamos bem essa peste! Ao menor contacto enterravam-se na carne, apesar de o pano dos fatos de combate ser forte. Em vez dos picos das silvas, tinham uma espécie de gavinhas que passavam pelo pano e não havia volta a dar-lhe. O remédio era seguir viagem até que as gavinhas quebrassem! Por vezes era necessária muita força. Aquilo dava uma comichão terrível.
Tive a curiosidade de analisar uma dessas plantas. Se lhes tocássemos com o cano da arma, não reagiam. Mas bastava aproximar um dedo e logo as gavinhas tentavam enrolar-se-lhe. Plantas carnívoras?! Nunca cheguei a saber.

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No marco geodésico

 

Foi um bom ensaio para este pelotão. Esperámos pela chegada do último homem e iniciámos o regresso ao acampamento sem novidade e mesmo com uma certa alegria.

Parece ser chegada a altura de deixarmos, finalmente, aquele lugar. Dentro de uma semana devemos nós iniciar o regresso a Luanda. Julgámos ter sido esta a última operação naquele fim do mundo. Oxalá…

Seguir-se-iam outros pelotões da nossa Companhia a enquadrar outros da Companhia de rendição.

Entretanto programava-se a entrega do material de guerra e das existências à nova companhia. Foi o Alferes Miranda encarregado da conferência e entrega desse material.

Nessa noite, iria sair um pelotão da nossa Companhia, com outro dos “novos”, para fazer uma emboscada. Os ruídos da noite, para quem a eles não está habituado, metem muito respeito. O pelotão escalado foi o quarto. Não tinha Oficial que o comandasse, pois o Alferes Canhoto tinha sido evacuado por motivo de doença. Foi o Furriel Silveira.

Saíram perto do anoitecer. O tempo encoberto fazia prever uma noite escura. Deixados pelas viaturas no local aprazado, como era habitual seguiram viagem mais uns quilómetros e voltaram para trás. Ao passarem pelo local onde tinham deixado os pelotões, verificaram que os homens já se tinham embrenhado no mato. Seguiram, então, até ao acampamento.

O tempo ia passando. Sabíamos que a nossa partida estava eminente. A Companhia dos “maçaricos” estava pronta para nos substituir!

Ouvia-se o zunzum das conversas nas casernas dos pelotões. Alguns dos “maçaricos” iam caminhando pela parada, olhando o negrume da noite.

– Se calhar vai dar chuva – disse um!

– Ná... aqui a chuva quando vem não avisa – diz um dos “velhos”.

Atacados pela “fauna”

Estava a observar isto quando vejo o Cabo Cifra, a correr com uma mensagem na mão à procura do Sargento de transmissões, que encontrou sentado na caserna a ler um dos seus livros policiais. Entregou-lhe a mensagem e ele dirigiu-se ao Comando. Ficámos desconfiados! Quando ele regressou todos quiseram saber o que se passava…

Então o Tendeiro, não sabendo se devia rir ou chorar (de riso, claro), informou que a mensagem era do Silveira, informando que tinham sido atacados pela “fauna” e pedia autorização para regressar. Não foi autorizado.

– Que se desenrascasse! – Foi a resposta.

Apreensivos, chamámos um dos condutores que tinha ido levar o pessoal da operação e que nos informou onde tinham deixado a tropa.

– Oh pá – diz o Marques Alves – passar uma noite naquele sítio é impossível!

Uma vez fomos para lá fazer uma emboscada e tivemos de fugir para a estrada e despirmo-nos todos para sacudir as formigas. Pobre do Silveira! E por cima com aquela malta nova toda atrás dele. Era um perigo ainda maior deslocar-se de noite.

Desviaram-se das termiteiras (ninhos das formigas) e lá se foram sacudindo conforme puderam e sem muito barulho. Estas são formigas grandes, de corpo avermelhado. Alguns ninhos eram da altura de um homem.

No dia seguinte o Silveira ao chegar vinha “todo roto”. Tinha passado uma noite horrível. Tanta responsabilidade para ele. Os “maçaricos” tiveram o azar de se encostar aos formigueiros, e nós sabíamos como isso era!

O Silveira pegou num pedaço de pão, numa caneca de café e ao mesmo tempo que ia mastigando olhava para o infinito. Ele não estava ali. Estava muito longe. Um berro fá-lo-ia saltar como se uma mina tivesse rebentado debaixo dele. O Marques Alves sorria, olhando-o de lado.

Só o Carvalho, sempre disposto a fazer uma “sacanice”, diz ao Silveira com o seu sotaque açoriano:

– É home, não penses mais nessa porra que já passou!

O Silveira nem se mexeu. Ali ficou sentado, a caneca do café vazia, dependurada no dedo, a mastigar o ultimo pedaço de pão!

– Filho de um cabrão! – Desabafou, com um grito…

Foi como uma trovoada quando se começa a formar. Aquele silêncio era prelúdio de trovoada. Aquela descarga brutal aliviou o espírito do Silveira!

Todos sabiam a quem se dirigia aquela frase. Por isso os que ali estavam ficaram calados. Felizmente era a última operação para nós naquele sítio.

Só faltava a entrega do material à nova Companhia. Julgamos que dentro de uma semana estaremos a caminho de Luanda, a cidade que era para nós uma miragem.

Tínhamos que aguardar com calma.

Finalmente estávamos de partida. De manhã cedo, já em cima das viaturas, olhámos a última vez para o acampamento. Via-se nos olhos de quase todos uma sombra de tristeza. Tanto trabalho para o construir…

Deixa lá. Vamos para Luanda. Lá é outro mundo...