Retalhos das Memórias de um ex-Combatente


Segundo filho

No princípio do mês tínhamos feito uma operação mais prolongada. Ficámos duas noites “fora de casa”, alimentados com ração de combate, caminhando quase ao Deus dará à procura de quem não prometeu encontrar-se connosco!

Pára aqui, caminha mais um bocado, embrenhámo-nos numa mata e aí montámos emboscada e passámos a noite. No dia seguinte foi o mesmo programa, mas passámos a noite emboscados em terreno de savana. Árvores raras, capim que dava só pela cintura. Aí ficámos toda a noite em vigilância!

Já pela noite velha, recebemos uma visita quase habitual nestas circunstâncias. O riso galhofeiro das hienas! Malvadas. Embora contássemos com elas, eu sentia sempre um suor frio ao primeiro riso!

Amanhã já vamos dormir nas nossas camas e estaremos mais descansados. Venha o nascer do dia! O sol, invariavelmente quente, era muito melhor do que esta escuridão.

Finalmente é dia. Agora temos de informar, pelo rádio, os condutores das viaturas aparcadas no acampamento o local exacto onde nos deverão recolher!

Que surpresa!

Chegámos ao acampamento, onde me esperava uma surpresa! O Sargento Tendeiro, das transmissões, correu para mim e abraçou-me:

– Muitos parabéns.

– Mas eu não faço anos hoje!!! – Respondi.

Então ele estendeu-me uma mensagem que trazia e leu: “Mãe e filho encontram-se bem” – e entregou-me o papel!

Agradeci, meti o papel no bolso e dirigi-me para a caserna. Pelos dedos ia contando os meses desde o embarque até à data do telegrama – 9 de Janeiro de 1963! Não me recordava de ter recebido qualquer informação da gravidez da minha mulher! Não é possível, exclamei para mim próprio! E dirigi-me à mala que tinha debaixo da minha cama, onde guardava os meus haveres. Peguei nos aerogramas e ia relendo alguns. “Ah! Aqui está”. Era um datado de Agosto, onde me era dada a novidade!

Só que era um período mau para a nossa Companhia, em que eu tentava esquecer o que nos tinha sucedido. As preocupações eram grandes e a notícia varreu-se-me da minha memória. Vejam só ao ponto a que uma criatura chega quando pressionada por factos a que não pode fugir!

Senti-me envergonhado comigo próprio. Felizmente que ninguém notou, pensei, depois de olhar à minha volta.

“E agora? E se eu morro o que vai ser da minha mulher com dois filhos? Bem, não há-de haver azar. Seja o que Deus quiser!” E dirigi-me para o chuveiro onde tomei banho, limpando-me do suor e do pó.

Felizmente o Carvalho, que estava de serviço à água nesse dia, tinha enchido os quatro bidões e havia bastante água, apesar de não convir abusar. Havia mais gente a querer tomar banho, só que nós tínhamos prioridade, por virmos do mato!

Enquanto tomava banho a ideia não me saia da cabeça: “tenho mais um filho! Meu Deus, e se há um azar? Os meus pais ajudarão a criar os netos! Chegarão eles a conhecer o pai? O que fazemos nós aqui? Não estamos a defender a Pátria?!” Sabemos que somos uma espécie de tampão a tentar evitar a entrada do IN para o interior de Angola, é essa a nossa missão. Mas quando conseguimos eliminar “inimigos” ficamos a olhá-los, corpos sem vida, farrapos humanos. E isso incomoda-nos muito...

– Oh Ribau, esquecestes-te que também queremos tomar banho??? Recriminou o Costa Pereira, sentado na cama à minha espera com a toalha embrulhada à cinta!

Estava tão absorto nos meus pensamentos que nem dei pela passagem do tempo.

– Já vou! Estou a acabar.

E embrulhei-me na toalha, deixando o chuveiro para o Costa Pereira.

Agora, mais fresco e com roupa lavada, estendi-me na cama. Os pés estavam inchados da caminhada. A solução era massajá-los um contra o outro. Passado um bocado nesta operação, a circulação normalizou e tornou-se mais confortável o descanso. Adormeci…

Sonhei que estava a fazer uma serenata à minha mulher. Era Dezembro, a noite estava luarenta, o céu limpo e azul, e fazia frio. Em silêncio aproximámo-nos de sua casa. Éramos três: um violino, uma guitarra e uma viola. No silêncio da noite, o violino começou a tocar a serenata de Schubert. O volume do som ia aumentando, enquanto a guitarra e a viola acompanhavam baixinho o som do violino! Nada mais se ouvia... De repente uma luz acendeu-se na janela do quarto dela. Eu sabia que ela estava a ouvir-nos…

– Ribau, não vens ao rancho? – Gritou-me o Gastão.

Acordei estremunhado. Fiquei mal disposto. Mais valia que me deixasse continuar a sonhar. Levantei-me e fui ao tacho.