A todos os bienos de alma e coração
"O tempo é a maré que leva e traz
o mar às praias
onde eternamente somos" (Ruy Belo)
Fecho os olhos cansados e rebusco nas telas da memória....
Kufungulula... kufungulula...
Volto aos sonhos da meninice perdida no capim das picadas à caça de
gafanhotos gigantes e salalés, lá para os lados das xitacas.
Saltito sobre trilhos de kissondes assanhados sob abóbadas de arco-íris
tropicais.
Retorno aos caminhos antigos de tabaibos maduros e espinheiras bravas,
loengos silvestres, kassússuas e lumuinhos do mato, maracujás e
mamoeiros em flor, maboques amarelinhos em bolas redondas, rubras
pitangas em cachos balouçando livremente nos galhos das árvores —
da vida.
Deambulo pelos bairros ancestrais e intocados de uma infância
traquina e de uma adolescência que não sabia dourada.
Como eu queria voltar a sonhar e a rir no centro desse imenso paraíso!... Lá, onde as
ruas eram largas e o chão de terra avermelhada, espreitando cajus e múkuas
ressequidas ao vento, quase a soltarem-se, velhos leques de coqueiros
e dendém, seculares mulembas arredondando-se em sombras, velhos
troncos de embondeiros apegados ao solo, à vida e ao céu. Cafezais
floridos. Floridos campos de girassol e algodão. Quimbos. Cubatas.
Lavras de mandioca, batata-doce, quiabo, feijão-macunde.
Repito brincadeiras nas mangueiras ou nas cassuarinas em busca de
pirilampos ou martrindindes cantores, de anduvas coloridas e
piriquitos macios e meigos.
Sonhos de infância e adolescência, chipipas desfazendo-se em flocos
de sumaúma leve, leve, levezinha...
Havia kissângua em início de fermentação. Havia barras doces de
ginguba bem torrada. Havia goiabada acabada de fazer. Havia matete. Havia
cana-doce. Peixe-seco com gindungo queimoso. Suanga. Pirão comido às
bolas moldadas entre três dedos da mão gulosa. Havia os sabores e os
cheiros e os sons do nosso encantamento. Havia rostos e almas e corações
de muitas cores e raças.
Havia lagoas com pedras e cobras d'água, rios de jacarés remexendo
correntezas, vultos fugidios de animais selvagens nas savanas e vozes
quebrando silêncios; ecos de batuques, conversas e cânticos
nas sanzalas. Havia chuvas tropicais serenando queimadas nas anharas
ao anoitecer.
Havia as esperas e as demoras, as partidas e as chegadas do
comboio-mala e do camacôve em apeadeiros de esperanças.
Havia olhares perguntadores. Compêndios de vida onde quase não cabia
a a morte nem a tristeza. Futuros promissores em quindas-berços,
agasalhos-de-apenas-sonhos: sem temores de incógnitas, sem aflições,
porque nenhuma treva faria sentido a ensombrar-nos as luas-cheias de
fantasias.
Era tempo de sol sem comprimento, ardente, acolhedor; e de dias
longos... Era tempo de quase-sempre-verão e de cacimbos-às-vezes...
Era tempo de poesia, de amizades, de correrias, passeios e repousos no
tempo do nosso deslumbramento.
Dos verdes anos, "no antigamente da vida", ficou
uma crepuscular poeira onde se vislumbram nomes e rostos que julgávamos definitivamente amigos...
Kufungulula...
Abril/2004
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