Artur Jorge Almeida, Junot na sátira popular, In: "Boletim da ADERAV", n.º 9,  Julho 1983, pp. 6-7.


Junot na sátira popular

 

No dia 22 de Março de 1831, faleceu na então vila de Aradas um mendigo. Pode parecer estranho, ao leitor, que esta efeméride tenha um tal destaque. Aparentemente será mais um pobre diabo, um ser marginalizado, um demente talvez, que deixou o mundo dos vivos.

Curiosamente, apenas sabemos que se chamava Manuel, como muitos outros que vivem ou viveram neste País. Desconhecemos onde nasceu e qual a sua família. No entanto, do assento do óbito que um pároco lavrou, conseguimos fazer um traçado da sua vida.

Era um mendigo, não natural da freguesia, na força da idade, que fora serviçal em conventos e em casa de pessoas de condição. Naquele dia de Março, entre o chilreio dos pássaros e o rumorejar de uma fonte, os seus gemidos cortaram os ares. De repente, um baque surdo do bater de uma cabeça na pedra fria. Depois o silêncio. Um silêncio de morte.

Foi, quem sabe, o único dia de felicidade na vida deste infeliz — o dia da libertação.

No dia vinte, e dois de Março de mil oito centos, e trinta, e hum falleceo de repente, e por conseguinte sem sacramentos, hum forasteiro, mendigo, chamado Manoel, que por sobre nome não perca. Tinha pouco mais, ou menos trinta annos de id.e. Era conhecido dos p.eS de Salgr.º; foi creado dos P.es de St.º Ant.º de Aveiro, e do B.el Rocha, de Ilhavo. Tinha repetidos ataques de gota, e de hum morreo, junto às fontes de Arada; dando com a cabeça em huma pedra. Era conhecido pelo appellido de Junot. Jaz na lgr.8 de S. Pedro, p.a onde foi conduzido no dia seg.e immediato. Fiz, e assignei este assento, para constar; sendo precizo: era, ut supra.

O Cura Joaquim Senos (1).

 

Deste assento, feito com cuidados mais próprios de historiador dos nossos tempos que de cura de uma igreja da primeira metade do século XIX, ressalta um pormenor, aparentemente insignificante: a alcunha do mendigo — “Junot”.

Nela está um estigma, um ferrete da sociedade, uma marca de escárnio, de sobremaneira injuriosa.

Era, talvez, naquela época, o mais torpe dos insultos que se poderiam dirigir a alguém. A prová-lo está uma determinação de Tomás Inácio de Morais Sarmento, publicada em Moncorvo, que estipulava uma pena de três meses de cadeia e dois mil réis de multa revertíveis para o Hospital daquela vila para aqueles que ousassem admoestar alguém com o epíteto de Junot, ou outro de igual jaez. No caso de reincidência a pena seria duplicada e ocorrendo uma terceira prevaricação o seu autor seria remetido como incorrigível, e indigno da Sociedade Civil à Intendência Geral da Polícia do Distrito para ser remetido ao Estado da Índia, ou ao Reino de Angola... (2).

É nas épocas de crise que as formas de luta contra o inimigo opressor se apuram. Entre elas, uma adquire especial significado — a Sátira. Quanto mais crítica é a situação, quanto mais perigosa a resistência, mais se recorre ao humor. Ele é um misto de raiva e impotência. A sede de vingança, o desejo de subjugar o inimigo, aguçam o sentido de crítica. É do perigo da clandestinidade que saem as críticas mais mordazes.

As Invasões Francesas são um dos momentos mais altos deste tipo de humor, em Portugal. A entrada do exército napoleónico no nosso País atingiu as raias do ridículo. De acordo com as ordens recebidas, atravessaram a Espanha a marchas forçadas, entrando em território português a 19 de Novembro de 1807. No dia 24 do mesmo mês tinham alcançado Abrantes. As tropas vinham exaustas e com os fardamentos esfarrapados, um autêntico exército de maltrapilhos, o que leva a população a comentar:

 

A entrada destes guerreiros
Foi com grande intrepidez:
Descalços de pé e perna,
Dois aqui, acolá trás (3).

 

A águia napoleónica tinha perdido o brilho. Os soldados imperiais, outrora modelo de aprumo militar, mais pareciam um exército de opereta:

 

Um homem com cabeça de donato
Tendo por barretina uma caneca,
Olhos gazeos boca d’Alforreca
O pescoço estendido como gato.

Borjaca suja, e rota por ornato
Calça de brim na perna nua, e seca;
Espada que andou por seca e meca;
Os dedos quasi fora do sapato!

Uma pele de cabra sobre o lombo
Cabacinha panela e caçarola, 
Espingarda que leva muito tombo

Eis um guerreiro da francesa escola
Agudo em manhas em juízo rombo
Que outro deus não tem que a Passarola (4).

 

Se o País tinha capitulado ante o invasor, não o tinha a população. Assiste-se, em Lisboa, a uma série de assaltos às sentinelas e durante alguns dias as tentativas de hasteamento da bandeira francesa eram neutralizadas devido à acção decidida do povo.

À medida que os franceses se vão instalando e elaborando proclamações ao povo português (rasgadas por mãos anónimas na calada da noite) os pasquins proliferam, ridicularizando cada vez mais o inimigo.

A revolta vai-se alastrando. Não são apenas os populares. Na Universidade de Coimbra, estudantes e lentes formam o Batalhão Académico. Os frades desempenham um papel fundamental no incitamento à revolta popular contra os jacobinos.

Os franceses não conseguem aguentar o clima de tensão. No dia 16 de Junho de 1808, durante a Procissão do Corpo de Deus, alguns populares correm aos gritos atrás de um ladrão. A população desorientada começa também a correr e os soldados tomados de pânico fogem deixando a artilharia abandonada no Rossio (5).

Nas proximidades de Leiria, os franceses, tomando por um bando de insurrectos os fiéis incorporados numa procissão, carregam. Estes dois acontecimentos são causa de chacota:

 

Valorosos de Austerlitz,
Acabou vosso valor;
Todos à uma fugiram
Do mais pequeno rumor.

Sabe Deus se esse Austerlitz
Esse Marengo, esse Yena,
Que o Gazeteiro nos diz
Será valor só de pena (6).

Deve em memória ficar
Do Corpo de Deus o dia,
Ao Francês abandonar
Toda a sua artilharia.

Forte acção forte batalha,
Em Portugal a primeira!
Bater-se a Tropa Francesa
Com o Círio da Ameixoeira.

E a esta gente de círio
Com a sua devoção,
De repente encontra a Tropa
Do grande Napoleão (7).

Investe com tal valor
Este exército aguerrido,
Que tudo desbaratou
Sem ter um dos seus ferido.

Só de burros mais de mil
Foram mortos n’esta acção;
Duas bandeiras tomaram
Da Virgem da Conceição (8).

 

Os nomes dos franceses são ridicularizados: Thiébault é conhecido pelo “Tio Bolas”, Lagarde por “Monsieur Lagarto” e o Junot o povo chama “Jinó”.

 

Vi com olhos magoados
N’estas francesas bisarmas,
De Camões um — às armas —
E os Varões assinalados
De França vieram marcados,
Dois d’eles eram manetas (9),
Era calvo o das gazetas (10),
Delaborde, enfermo e pisco,
O Junot trazia um risco,
Faltou vir um com muletas (11).

 

Este risco de Junot era uma das cicatrizes ocasionadas por duas balas que lhe atingiram a cabeça, uma em 1792, a outra em 1796. Tais ferimentos foram a origem da sua loucura.

Foi um louco que Napoleão nos mandou, aliás tão somente para evitar os assédios que aquele fazia à sua irmã.

Aproveitando a sua loucura megalómana, gravita em torno de Junot uma corte de bajuladores preocupados em enriquecer:

 

Quem oprime os Portugueses
Quem os rouba sem ter dó?
É esta Tropa Francesa
De quem é chefe Junot (12).

 

Não lhe chega o título de “duque de Abrantes”,

 

Duque de Abrantes
Pelo Imperador dos Tratantes (13)
convencem-no que deverá ser rei, Rei de Portugal. Tratam-no por Vossa Alteza. E ele cai no engôdo. Exige que o tratem com reverência, rodeia-se de luxo.

O povo não lhe perdoa, torna-se extremamente popular uma nova dança obscena que recebe o nome de “Jinó” (14).

As ameaças de morte sucedem-se:

 

... é jurar
De matarmos o Jinó
E antes que ele se vá
Havemos fazê-Io em pó (15)

 

ou

 

Junot, come e dança
Que a tua cabeça
Não torna a França (16).

Está próxima a derrocada.

O Ducado de Abrantes
Está a vagar por instantes (17).

 

 

Junot nunca mais será o mesmo: com o insucesso da 1ª Invasão cai das nuvens da sua loucura o régio sonho que havia concebido. Ainda volta a Portugal integrado no exército de Massena. Posição subalterna extremamente humilhante para o pretendente ao trono de Portugal.

Afastado por Napoleão, esquecido e abandonado por todos, em 1813, suicidou-se num acesso de loucura, atirando-se de uma janela.

Era o fim de Andoche Junot, nascido em 1771 de uma família burguesa, o “Sargento Tempestade”, general que nunca deixou de ser sargento, “duque de Abrantes” e aprendiz de rei.

A sátira popular é por vezes uma arma demasiado poderosa. Ela foi um forte contributo para a concretização dos acontecimentos que deram origem a esta morte trágica, ocorrida em S. Pedro de Aradas, em 1831.

ARTUR JORGE ALMEIDA

___________________________ 

NOTAS:

(1) - Livro de óbitos da freguesia de S. Pedro de Aradas (1815-1860), fI. 65v.

(2) - MARIA ERMELINDA DE AVELAR SOARES FERNANDES MARTINS, “Coimbra e a Guerra Peninsular”, Atlântida, Coimbra, 1944, p. 80.

(3) - Idem, ibidem, p. 59.

(4) - Idem, ibid, p. 59. A “Passarola” designa a Águia Imperial.

(5) - Quando Junot, já ao corrente dos acontecimentos, pretendendo mostrar-se valoroso, perguntou a um cadete da Legião Portuguesa qual a causa da desordem, teve por resposta, segundo um autor da época, que eram os soldados franceses que fugiam e metiam medo ao povo.

Vd. MARIA ERMELINDA MARTINS; lbidem, p. 78.

(6) - Ataca-se aqui a propaganda de Lagarde na “Gazeta de Lisboa”. Lagarde não hesitava em divulgar falsas notícias sobre as acções militares imperiais. As gazetas clandestinas, por sua vez, encarregavam-se de as meter a ridículo.

(7) - Além destes versos surgiu um folheto intitulado “Esta famosa batalha foi travada nos campos d’Otta entre o general francez Margaron e Thereza Maria da Silva, juíza do Cyrio da Ameixoeira. O exercito d’este era forte de 25 paisanos camponezes d’infantaria, armados de cajados, 12 dragões armados de varinhas de marmeleiro; de 6 velhas muito gordas que serviam de obuses e que lançavam por invento novo 10 bombas por minuto, etc.”

Vd. RAUL BRANDÃO, “El-Rei Junot” INCM, col. Biblioteca de Autores Portugueses, 1982, pp. 167-168.

(8) - Idem, lbidem,pp. 169-170.

(9) - Um era o sinistro Loison, de má memória, cujas atrocidades deram origem à expressão “ir para o maneta”.

(10) - O Intendente Lagarde, chefe de uma complicada rede de espionagem.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .careca
Que Intendente se fez sem vara ou beca!

Vd. MARIA ERMELINDA MARTINS, ob. cit., p. 68.

(11) - ldem, Ibidem, p. 87.

(12) - ldem, Ibid., p.80.

(13) - ldem, lbid., p. 68.

(14) - RAUL BRANDÃO, ob. cit., p. 161.

(15) - ldem, lbidem, p. 269.

(16) - ldem, lbid., p. 174.

(17) - MARIA ERMELINDA MARTINS, ob. cit., p. 85.

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