Histórias de Bolso das Gentes de Aveiro - 2006/2007


A noite da Consoada

Para termos a sensação de que o mundo está prestes a desabar, que tudo à nossa volta vai ruir, não é forçoso que a terra trema. Já tive essa experiência.

O meu marido ficou doente com tosse, uma constipação forte.

O médico ia lá a casa vê-lo, de vez em quando auscultava-o, mas não notava nada de especial, porém o Rogério continuava a tossir. Um dia começou a ficar com muita tàlta de ar. O médico, quando eu lhe telefonei, foi lá a correr, e, dessa vez, ficou preocupado com o estado dele. Disse que ele deveria estar a fazer uma pneumonia atípica, pois quando o auscultava não parecia ter pneumonia, mas pelos outros sintomas ... mais valia prevenir. Nesse mesmo dia, foi internado no hospital. Após observação e vários exames, durante o decorrer dos quais o mal se agravou, os médicos chegaram à con­clusão de que ele estava numa situação bastante grave, de modo que foi entubado e mandado para os cuidados intensivos. Tudo iria depender da sua reacção durante as setenta e duas horas seguintes. Não bastando o mal que já o atormentava, o meu marido contraiu uma infecção hospitalar. O caso complicou-se e já lá iam onze dias de internamento sem ele reagir aos tratamentos.

Quando ia visitá-lo, fazia-me muita impressão ver todos aque­les tubos abanando, parecendo que lhe davam ar com uma força enorme, mas ele estava inconsciente!. .. Eu via as pessoas entrarem ali, saírem, entrarem outras e saírem; e ele sempre na mesma; co­meçava a desanimar.

Era a véspera de Natal, o dia de ceia, como dizemos na nossa terra. Como iria ser a nossa Consoada sem o pai de família a presi­dir à mesa, sem a sua alegria, a sua presença?

Temos três filhos e os rapazes andavam numa tristeza infinda.

Eu procurava animá-los, mas as forças começavam já a faltar-me.

Fui ver o Rogério mas ele continuava sem dar acordo de si, nem um ligeiro vestígio de melhoras. Nesse dia fiquei mais abatida ainda que de costume. Resolvi ir falar com o médico e disse-lhe:

– Ó, senhor doutor, parece-me que não vejo melhoras nenhu­mas no meu marido. Explique-me o que realmente se está a passar, pois ando desesperada, já o não posso ver assim.

– Ó minha senhora, se quer que lhe diga sinceramente, o caso do seu marido é muito delicado, para lhe falar com a máxima fran­queza, dali já não se espera nada, mas nós vamos continuar a tentar tudo.

Fiquei gelada. Foi nessa ocasião que o mundo começou a de­sabar em meu redor. Eu assistia desesperada e impotente.

Voltei a casa totalmente aniquilada. Ainda por cima era o dia de Ceia!

Pensei nos meus filhos, e para que não ficassem como eu, de­sesperados, resolvi dizer-lhes, que nessa tarde não fossem visitar o pai.

– Ele não dá por nada, eu já fui lá, e ele está como de cos­tume.

Mas o João, o filho do meio, não deve ter gostado da minha explicação. Calou-se, e sem ninguém dar por isso, dirigiu-se ao hospital.

Quando chegou a casa era já tarde, estava na hora de nos sen­tarmos à mesa para cear. O João vinha numa enorme alegria, e, mal entrou, gritou para mim:

– Mãe, o pai está melhor! O pai está melhor!

É claro que todos parámos para o ouvir, mas eu tendo ainda nos olhos a tristeza de ver o meu marido vegetando, e nos ouvidos as duras palavras do médico, vaticinando o pior, respondi:

– Está melhor o quê? Homem! Então ainda há bocado o mé­dico me disse que ele estava tão mal! Que dali não se esperava nada!. ..

Meu filho exuberante continuou:

– Olha! Desta vez reagiu e está melhor, está com a tempera­tura quase normal.

Os médicos iam-lhe administrando cocktails de antibióticos diferentes para ver se o doente reagia.

Custou-me a acreditar, mas fiquei muito contente. Passámos a noite muito mais animados, pois embora ele não estivesse presente, já havia esperança em nossos corações.  

A partir daí foi sempre a melhorar. Ainda esteve parece-me, mais dois dias nos cuidados intensivos, mas depois passou para uma enfermaria normal, e lá foi melhorando.

Só que ficou tetraplégico.

Quando o Rogério tomou consciência do seu estado entrou num desalento total.

O médico disse que ele ia fazer fisioterapia e algum tratamen­to auxiliar. Mas preveniu-me também:

– Se ao chegar o Verão ele conseguir dar uns passitos, pensem em se instalar apenas no rés-do-chão da casa, para não terem de subir e descer escadas.

Mas, qual quê! Quando chegou o Verão, o Rogério já era um homem novo.

O forte e carinhoso apoio da família, e o regresso a casa de­ram-lhe novo ânimo.

Andou dois meses e meio em fisioterapia e foi lentamente me­lhorando. Começou a recuperar os movimentos, a mexer-se, e em Abril já conseguia conduzir.

No Verão, graças a Deus, fazia a sua vida normal.

Foi algo de espectacular!

O filho desobedecendo à mãe, fora perguntar ao médico, e ele logo lhe disse que finalmente o pai reagira aos medicamentos, e estava melhor. Ao último cocktail que lhe deram, por sorte reagiu bem.

Eu dissera aos filhos que não valia a pena ir ninguém ao hospi­tal pensando que eles, ao verem mais uma vez o pai naquele estado letárgico, passariam a noite ainda mais tristes que de costume, e tristeza era o que há muito não faltava na família.

Curioso, foi o João, que normalmente era obediente, nessa al­tura desobedecer à mãe.

Apesar de eu lhes dizer que o pai estava muito mal, que não havia remédio, que não valia a pena irem visitá-lo, porque a sua reacção não seria nenhuma, o João desobedeceu e foi ver o pai, cheio de apreensão, mas com uma chispa de esperança, e a chispa incendiou-se. Parece que o instinto o levou lá para receber a feliz notícia.

E quando veio trouxe-a.


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