Aida Viegas, Oliveira do Bairro. Memórias de um século. Águeda, AVI, 1994, pp. 85-90.

Alimentação

O nosso povo sempre fez jus a uma boa refeição, gosta de cozinhar e comer bem. No entanto, durante a primeira metade do século, a escassez de alimentos, ocasiona­da pelo decorrer das guerras, obrigava toda a gente, pobres e ricos, a reduzir a sua alimentação.

Todos os artigos de compra e sobretudo os géneros alimentícios, eram racionados e vendidos por senhas rateadas de acordo com o agregado familiar

Nem os alimentos produzidos em casa se podiam con­sumir à vontade, toda a produção tinha de ser obrigatoria­mente “manifestada” e a maior parte dela entregue no Grémio. Se nem todos passavam fome era porque conseguiam esconder alguns cereais e outros produtos que cultivavam. Os mais endinheirados por vezes adquiriam na “candonga” alguns bens menos correntes.

O merceeiro tinha uma caderneta para cada chefe de família dos seus clientes onde estavam mencionadas as pessoas que faziam parte do agregado familiar Era mediante estes dados que cada família tinha direito a determinado número de senhas, nas quais constava a porção que lhe cabia de cada artigo. Uma família de 6 pessoas, por exem­plo, poderia ter direito, por mês, a meio litro de azeite, meio quilo de açúcar, um quarto de quilo de sabão, meio quilo de bacalhau

Em algumas famílias o dinheiro era tão pouco, que nem conseguiam comprar a mísera porção que lhes estava destinada.

Nestes casos o merceeiro, embora sujeitando-se a pesada multa ou mesmo prisão, vendia na “candonga” esses produtos aos amigos ou a quem lhos pudesse pagar por preços elevadíssimos.

Hoje, que há tanta fartura e se estraga tanta comida, deve ser difícil aos jovens acreditar nestes relatos. Na década de quarenta cabia a cada membro duma família, por refeição, meia sardinha ou um naco de toucinho. Toda a carne de porco era aproveitada para tempero, dado que o azeite era uma raridade, óleos e margarinas não existiam e manteiga poucos a conheciam. Carne de vaca comprava-se no talho duas ou três vezes por ano em dias de festa.

Galinha ou coelho matava-se ao Domingo só em casa das famílias mais remediadas. O caldo de galinha só era dado como dieta aos doentes, porém, quando uma mulher dava à luz tinha o privilégio de comer galinha todos os dias após o parto; algumas gabavam-se de comerem 15 galinhas em 15 dias.

O peixe que se consumia era: sardinha, chicharro, carapau e raramente lingueirão ou cavalas. Durante o Verão todas as famílias compravam peixe para salgar, o qual iriam comer durante o Inverno.

O pão era pouco, por isso tinha de ser comido com parcimónia. Pedacinho de pão que ao chão caísse era apanhado, beijado e às vezes soprado, mas sempre comido.

Quando em casa faltava a broa, pedia-se uma emprestada à vizinha, devolvendo-lha após a cozedura seguinte. Com o terminar da guerra tudo foi voltando à normalidade. A evolução, muito lenta de início, começou a acelerar com o passar dos anos até chegar ao turbilhão e à fartura de que hoje desfrutamos.

De uma alimentação simples, frugal e pensamos que saudável, passou-se para outra bem diferente em que a carne e outras coisas se comem em demasia e o processo de cozinhar os alimentos se alterou totalmente; saltou-se do oito para o oitenta. Até à década de 1960, a população distribuía as refeições ao longo do dia do seguinte modo:

- de manhã bem cedo tomava-se um café, geralmente de cevada, que se fazia ao borralho, na chocolateira de cobre que aí permanecia toda a semana com as borras às quais todos os dias se acrescentava uma ou duas colheradas de pó; este “café” era acompanhado com migas de broa; como complemento os homens e muitas mulheres matavam o bicho com um copo de cachaça;

- pelas 9 da manhã comiam o almoço que constava de sopa ou comida de garfo; batatas cozidas com cebola e “conduto” se houvesse;

- ao meio dia era a vez do jantar; sopa feita com feijão, batatas, couves e carne de porco com um pedaço de broa;

- à noite vinha a ceia; escuado ou escorrido, de batatas e bacalhau com couves, temperadas de azeite, quando havia;

- no Verão, a meio da tarde, comia-se a merenda; broa e azeitonas, figos secos ou “jaquinzinhos” fritos.

A refeição do meio dia era, durante quase todo o ano, comida no campo onde a família trabalhava de manhã à noite. Apenas uma mulher ficava em casa para tratar do gado e fazer a comida.

Esta mulher punha ao lume, logo pela manhã, a pane­la de ferro com os feijões e a carne de porco a cozer Ao lado na lareira fervia o panelão grande da “lavagem” dos porcos. A mulher afadigada ia atiçando o lume a uma e a outra enquanto cuidava das aves de bico, dos coelhos, dos porcos e das vacas.

Chegado o meio dia preparava o cesto com a panela da sopa, metade de uma broa, uma garrafa de vinho e algu­mas colheres. Tapava tudo com um pano e, de cesto à cabe­ça em cima da rodilha, lá ia ligeirinha levar o comer

Os trabalhadores aproveitavam a sombra duma árvore, quando esta existia ou comiam mesmo junto à carroça, cujos varais serviam de assento. A seu lado presa a uma roda estava a vaca que ia ruminando uma gabela de pasto ou de bandeiras.

Durante a refeição a garrafa do vinho rodava e todos bebiam, incluindo as crianças: “o vinho ajudava a empurrar a comida e. dava força” Chegava-se ao extremo de calar os bebés, quando estes choravam, com um rolhão de açúcar molhado em vinho. Leite só o tomavam as crianças de colo, cujas mães as não pudessem amamentar, e os doentes. Os doces só se comiam por festa e em doses mínimas. Os rebuçados que vulgarmente se encontravam à venda, cinco por meio tostão e “cada cor seu paladar” serviam muitas vezes para adoçar o café em vez do açúcar que quase não existia

Pelo Natal faziam-se umas filhoses ou bilharacos de abóbora e pelas festas da terra uma sopa de carne de vaca e assava-se carneiro. A sobremesa mais usada em dias de festa era aletria.

A Páscoa era adoçada pelos folares e algumas amên­doas. O pão-de-ló e os suspiros só vieram mais tarde.

As papas de abóbora eram feitas só no fim da vindi­ma e mais uma ou duas vezes por ano. A parte de cima das papas era a mais gostosa e depois destas despejadas na bacia de barro e cobertas de canela, secava rapidamente.

Conta-se que um dia, um pequenote, apanhando a mãe desprevenida, comeu com grande sofreguidão a “côdea” da bacia das papas.

Depois de satisfeita a sua gulodice, reparou pesaroso no mau aspecto com que aquilo ficou e, pensando que a mãe descobriria a sua lambarice, pedia às papas encarecidamente:

- «ó papas criai côdea senão a minha mãe mata-me». Esta e outras historietas contavam-se amiúde ao borralho e com elas se iam ensinando as crianças a não mexerem onde não deviam.

O bacalhau, fiel amigo dos portugueses, não faltava em casa nenhuma pendurado numa das paredes da chami­né. Umas febras de bacalhau cru e um naco de broa já ajudavam para beber um copo quando o pessoal, chegado do campo, vinha com a “barriga a dar horas” e a panela ainda sem estar ao lume. Além de o bacalhau ser sempre benvindo no escuado, fazia-se com ele sopa logo pela manhã. Porém o melhor pitéu era, sem dúvida, a “tibornada”, ou bacalhau à lagareiro, assado no lagar do azeite com batatas a murro quando a malta ia moer a azeitona.

Antigamente, o leitão assado à moda da nossa Bair­rada era servido apenas nos casamentos; como tal era vul­gar perguntar a um jovem casadoiro: “quando é que nos vais dar leitão”? O consumo deste prato foi-se generalizando e hoje em dia, por tudo e por nada, se manda assar um leitão que se come acompanhado de laranja, sempre com redobrado apetite em qualquer dia do ano.

Em terra de vinhedos, o vinho não podia faltar à mesa e se um copo de bom vinho pode estimular o apetite e tornar mais agradável o repasto, não deixava de ser verda­de que o vinho dava de comer a um milhão de portugueses; o que não se acrescentava e também era uma realidade é que grande parte desse milhão de portugueses, além de comer, também bebia e muitas vezes demasiado.

A bebedeira era o estado normal de muita gente e os males incontáveis que daí advinham e se projectavam de geração em geração, tornavam-se um pesadelo. “Beber um copito”, “tomar um tinto na adega de um amigo”,  convidar alguém para vir provar o vinho, chamar a comadre para beber um branquinho ao Domingo, “pagar uma rodada na taberna”, estava tudo certo.

Depois... andar à bulha ao fechar a taberna; chegar a casa e dar uma tareia à mulher e aos filhos sem motivo nem razão; partir a loiça, espantalhar tudo e maltratar os ani­mais; andar pelas ruas a cambalear a pé ou de bicicleta; ficar caído pelas valetas; gerar filhos com problemas - tudo isto era frequente e tristemente lamentável.

Para quem não bebia vinho, além da água fresca e pura das nossas fontes, havia o pirolito que era a gasosa da época, ou a laranjada do Buçaco. Mais tarde andou muito em moda o “champorriô”, uma mistura de vinho branco, cerveja e açúcar.

Um costume muito interessante, que de certo modo tinha a ver com a alimentação e ao mesmo tempo com as festas de “anos”, eram as “tramoçadas”:

- “Venho convidar-te para vires, Domingo, à minha tramoçada” Era este o convite que qualquer rapariguita dirigia às suas amigas para a festa do seu aniversário.

A ementa constava de uma ou duas “pratadas” de tremoços acompanhadas de vinho ou raramente de laranja­da. Nunca faltava animação na festa onde ao redor da mesa se comiam os tremoços, se cantava e até por vezes se dan­çava. “Fulana fez uma grande tramoçada!!!” Esta exclama­ção era sinal da ostentação dada. Também era costume dar tremoços no final das novenas a quem nelas participava e ajudava.


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