Aida Viegas, Abandonar Angola. Um olhar à distância. Aveiro, 2002, pp. 91-99.


Desaparecidos

Cedo me apercebi que o que me contara o Albano fora apenas uma gota de água.

O desaparecimento das pessoas era uma constante; e muitas vezes não eram mais encontradas. Os familiares e amigos moviam todas as influências, deitavam mão de todos os meios ao seu alcance para conseguirem descobrir o paradeiro dos desaparecidos e quando pensavam estar no seu encalço, começava uma saga de desespero e esperanças temperada dum enorme sofrimento causado pela incerteza das reacções imprevisíveis dos raptores e do que eles poderiam fazer com quem raptavam: manter as pessoas den­tro da cidade sem a mínima hipótese de comunicação, torná-las alvo de violações sexuais ou outras, de maus tratos físicos e morais, obrigando-as a ingerir dejectos humanos tal como a alguns prisioneiros que foram retidos durante semanas na praça de touros, aparecerem mortas em qualquer lugar como sucedeu no quintal duma vivenda na Vila Alice onde foram encontrados quatro corpos esquartejados e enfiados numa fossa séptica ou darem-lhes sumiço nas densas matas onde os obrigariam a percorrer distâncias inimagináveis expostos a perigos de toda a ordem e por fim sumirem-nos sem deixar rasto, tal como acontecera meses antes ao casal Figueiredo, o Fausto e a Lucinda quando regressavam da sua fazenda de gado em Nova Lisboa.

A última vez que Matilde e João haviam estado juntos com estes amigos numa festa em casa dos Rodrigues, amigos comuns, o Fausto dissera ao marido de Matilde:

— Não estou minimamente preocupado com a situação, todos os pretos que têm trabalhado comigo continuam meus amigos; pago-lhes bem, sempre os respeitei, como tu sabes, e trato-os como se fossem de família.

Na realidade Fausto era uma excelente pessoa, homem bem formado, andara no seminário até tarde e quando saiu, além de continuar um bom católico era pessoa de fino trato e de um humanismo exemplar. Casara tardiamente com uma mulher já madura, a Lucinda, senhora elegante dona de dois bons colégios em Luanda onde gozava de bastante prestígio pelos cargos de directora dos seus estabelecimentos de ensino. Fausto tinha sido durante vários anos prestimoso funcionário bancário e resolvera há tempos atrás, dar um novo rumo à sua vida afastando-se do banco e dedicando-se à criação de gado numa fazenda que comprara perto de Nova Lisboa. Possuía na altura umas largas centenas de cabeças de gado e andava cheio de entusiasmo com a nova aventura.

Faziam, ele e a esposa, a viagem de regresso a Luanda após terem passado uns dias na fazenda quando foram vistos pela última vez no alto de Cambambe, ao volante do seu mercedes, que haviam comprado meses antes. Nesse local, segundo relato de testemunhas oculares foram interpelados por uma patrulha do MPLA. Constou ainda que se faziam acompanhar por um enfermeiro conhecido de Nova Lisboa, conotado como da Unita. Desconhece-se porém se o facto de terem dado esta boleia teve alguma interferência com o seu desaparecimento, tendo no entanto sido ventilada esta hipótese. O certo é que nunca mais foram vistos. Houve po­rém quem visse o seu carro no Norte, conduzido por um militar do MPLA.

A notícia do seu desaparecimento correu veloz entre os amigos e conhecidos e em breve se espalhou por toda a cidade. Foram tomadas todas as providências, usados todos os meios possíveis e imaginários mas em vão, notícias deles nunca mais. Isto acontecera pouco tempo depois do vinte e cinco de Abril.

Um irmão da Lucinda que vivia no continente ao tomar conhecimento do desaparecimento da irmã e do cunhado deslocou-se propositadamente a Angola onde morara vários anos e onde tinha grandes amizades e influências. Aí chegado, deitou mão de todos os recursos, moveu todas as influências para tentar ao menos descobrir o paradeiro dos familiares, mas nada conseguiu. A irmã sofria de grave doença e supostamente faltar-lhe-iam os remédios que necessitava tomar todos os dias, o que mais aumentava a preocupação da família. Quando passados largos meses de buscas, promessas de ajuda e seguimento de pistas, o irmão da Lucinda estava prestes a desistir alguém lhe lembrou que um Padre vedor, antigo professor e amigo do Fausto talvez o pudesse ajudar.

Numa última tentativa pediu ao sacerdote, já idoso, que se deslocasse a Luanda o que o bom homem fez pron­tamente cheio de vontade de lhes ser prestável.

Foi-lhe entregue uma foto dos desaparecidos e um mapa de Angola e o Padre conseguiu localizá-los através do mapa numa zona de densa mata junto de um rio. Disse ainda parecer-lhe que o Fausto se encontrava de boa saúde enquanto a esposa se lhe afigurava extremamente debilitada. De imediato foi mobilizado um helicóptero e outros meios aéreos que ao fim de algumas horas de busca confirmaram ser verídico o que havia sido diagnosticado pelo padre vedor. Eles lá estavam acampados junto ao rio vigiados por soldados, porém, logo que estes se aperceberam de movimentos aéreos estranhos iniciaram com os reféns a marcha por uma picada e embora seguidos por algum tempo, em breve se embrenharam na mata conseguindo despistar quem os seguia e desaparecendo definitivamente sem nunca mais deixarem rasto algum.

Chorados por familiares e amigos, durante muito tempo pairou em todos uma dúvida de esperança; talvez algum dia voltassem, certamente os turras não os iriam matar. Porque haveriam de fazê-lo? Nunca se meteram em política, o Fausto nem às forças armadas pertencera.

Amigo muito chegado de meu marido tendo sido colegas de estudo, o Fausto, desde que nos encontrámos em Luanda, ainda ele estava solteiro, era visita assídua de nossa casa, companheiro de brincadeiras e compincha de nossos filhos a tal ponto da Clarita o chamar de seu namorado.

Sentimos muito a sua perda e ainda hoje nos custa acreditar em tão fatídico destino.

Este facto, mais vinha provar que não era um comportamento racista ou de injustiça praticada contra os negros que os levava a cometer actos de vingança contra os portugueses.

Estes desaparecimentos de pessoas, antes esporádicos, eram agora o pão nosso de cada dia.

Com receio dos raptos e de muitas outras represálias e crimes os brancos iam sendo corridos das áreas altas e mais dispersas da cidade, abandonando suas casas forçados ou por sua livre vontade, ditada pelos acontecimentos funestos e ataques que dia a dia se intensificavam, levando as pessoas visadas a procurar abrigo em casa de conhecidos, amigos, parentes ou mesmo como nós em hotéis na zona baixa da cidade. Como eu havia previsto, estávamos, pouco a pouco, a ser encurralados, cada vez numa área mais restrita junto ao mar exactamente como os caçadores no mato fazem à caça.

Vindos de todas as partes do território aonde se ia estendendo a guerra, não paravam de chegar a Luanda desalojados e deslocados. Porém, aqui chegados, sem alojamento possível, procuravam protecção junto do palácio do governador, instalando-se nos jardins fronteiriços ao mesmo, amontoavam-se no aeroporto ou na zona de protecção do porto marítimo sempre na esperança de conse­guirem de alguma forma sair deste inferno.

A verdade é que os confrontos eram cada vez mais violentos, o respeito pela vida e pelos direitos das pessoas era letra morta. O roubo, o rapto, as violações, a tortura física, a morte e a justiça popular aplicada arbitrariamente, aumentavam a cada dia que passava. Formaram-se tribunais populares que faziam julgamentos ad hoc.

Os movimentos de libertação travavam entre si acusações mútuas, os acordos não se cumpriam. O MPLA aniquilara quase todas as delegações da FNLA.

No seio das tropas portuguesas sentia-se que se instalara a confusão queixando-se muitas vezes os militares de não saberem a quem obedecer pois em muitas ocasiões recebiam ordens controversas. Ao mesmo tempo muitos se queixavam de lhes estarem a fazer uma autêntica lavagem ao cérebro tentando incutir-lhes ideias marxistas que eles rejeitavam. As pessoas ao sentirem-se atacadas ou em risco pediam auxílio às nossas tropas ou à polícia mas nem uns nem outros conseguiam valer a toda a gente; respondiam sistematicamente que iriam fazer os possíveis, mas nunca chegaremos a saber o que lhes era possível fazer numa situação destas. Certo é que na maioria dos casos o auxílio não chegava. A passividade que, diz-se, lhes era ordenada, de forma alguma podia ser entendida pelos civis em perigo.

A guerra fria que aliás só em sessenta e um se tinha feito sentir em Luanda transformara-se agora em guerra quente e sangrenta acompanhada de todos os horrores que uma guerra traz consigo.

A escolha de uma fuga era cada dia menor. Por terra, ninguém poderia sair de Luanda visto as saídas estarem bloqueadas. Por outro lado ninguém pretendia fazê-lo já que as outras cidades ainda ofereciam menor segurança. As saídas eram pois apenas duas. Uma o mar, com todos os perigos que ele encerra, sobretudo quando enfrentados sem um mínimo de recursos; muitos se fizeram ao mar em traineiras e noutras pequenas embarcações. A outra saída possível era o aeroporto mas este, só para os mais felizardos já que muita gente não possuía meios monetários suficientes para custear o transporte aéreo de toda a família.

De início a maioria das pessoas pretendia um voo da TAP para Lisboa, porém fazia tempo que qualquer destino - Brasil, África do Sul, ou qualquer cidade europeia - servia para sair deste inferno. Não havia avião que levantasse voo de Luanda que não levasse a lotação esgotada. A África do Sul desde inicio ofereceu os lugares vagos nos seus aviões, que escalassem Luanda, para o transporte de refugiados, mas por incrível que pareça o Governo Português começou por não aceitar tal oferta.

Se não fosse mais tarde a ajuda de praticamente todas as grandes companhias internacionais de aviação, que ao aproximar-se a data marcada para a independência colocaram à disposição dos refugidos portugueses, os seus aviões para o seu transporte gratuito para Portugal, e, estou crente forte chacina se teria abatido sobre os portugueses indefesos que ajudaram a levantar, desenvolver e engrandecer esta terra. Muitos aqui teriam perecido, tudo se conjugava para que assim acontecesse.

Havia pouco tempo, ouvíramos em Portugal um dos vultos mais proeminentes da revolução, um dos grandes mentores da entrega apressada das nossas ex-colónias, um dos maiores responsáveis da desgraça de tanto ser humano, desgraça essa que se prolonga já por vinte e muitos anos e Deus sabe por quanto tempo mais... esse mentor da descolonização dizia num acalorado discurso político: «os retornados do ultramar estão a ser para a nação um grave problema, nós nunca esperámos este regresso em massa, pensámos que alguns viriam mas nunca toda esta avalanche e não estávamos minimamente preparados para os receber».

Com esta invasão que vem por aí é que vai ser o bom e o bonito!

Se os políticos arquitectaram tudo para que os por­tugueses não tivessem hipótese de permanecer por mais tempo em Angola com um mínimo de condições e de segurança, digam-me então qual era o destino a que toda a população europeia residente em Angola estava votada pelos governantes?

Se não fosse a ponte aérea posta à disposição dos portugueses residentes em Angola por diversos países nunca teria sido possível saírem daquela terra tantos milhares de pessoas antes da independência, e, permanecendo lá, só poderiam ter vindo a ser carne para canhão.

Durante muitos anos brancos e negros tinham vivido sem conflitos, em harmonia. As relações degradaram-se a partir do momento em que começaram a lavrar, entre as sociedades negras, as ideias de que os portugueses estavam ali a mais, que tudo o que possuíam deveria passar de imediato a pertencer aos negros, que os brancos naquela terra não eram um factor de desenvolvimento mas de atrofia e usurpação, que a independência se deveria fazer apenas com negros, os quais deveriam tomar exclusivamente e de imediato em suas mãos os destinos de Angola. Apoiada a independência por povos “amigos” como a Rússia e Cuba e incentivada pelo governo português, estas ideias rápido proliferaram dando origem a que os brancos começassem a ser escorraçados. A finalidade era banir-nos daquelas paragens não nos restando outra alternativa senão abandonar Angola.

Em todas as circunstâncias a população negra era incentivada contra o branco em geral e o português em particular facto que forçou definitivamente a nossa partida.


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