Henrique J. C. de Oliveira, Por terras de Arouca. Quatro antigas oficinas oleícolas, In: Separata da revista "Estudos Aveirenses", n.º 2, ISCIA, Aveiro, 1994.

 

1 - PREFÁCIO

Em 1979 nasceu em Aveiro uma associação para defesa do património natural e cultural da região de Aveiro - a ADERAV -, visando sensibilizar para a salvaguarda e valorização para as gerações vindouras dos diferentes aspectos da região - naturais e culturais. Nesse mesmo ano, foi criado um boletim para publicação de artigos da mais diversa índole, de cujo corpo redactorial fizemos parte durante os primeiros anos.

Por essa mesma altura, decidimos redigir um trabalho com certa profundidade, tendo em vista dar a conhecer alguns aspectos de carácter linguístico-etnográfico ligados a uma área ancestral da actividade humana. Como é do conhecimento de todos, Portugal, pela sua situação e características geográficas, encontra-se englobado numa vasta área de civilização mediterrânica, a que andam ligados dois grandes elementos naturais - a oliveira e a vinha. Estes dois produtos foram importantes para toda a civilização ocidental, importância essa que ainda hoje não perdeu o seu valor, apesar do azeite, o mais importante óleo alimentar, ter sido relegado para segundo plano na maioria dos países europeus.

Portugal, embora nunca tenha sido o maior produtor de azeite, segundo cremos, foi, no entanto, um dos grandes produtores. Embora nos situemos actualmente atrás da Espanha em termos de quantidade, mesmo assim o azeite português está em primeiro lugar a nível da qualidade, facto que tem levado o país vizinho, e não apenas ele, a adquirir azeite português para melhoria da qualidade do seu próprio produto. E não somos nós que o afirmamos. Dizem os técnicos que o «azeite português é reconhecido mundialmente pela sua alta qualidade, nomeadamente o produzido em Trás-os-Montes (...)   ... é conhecido que, quer em Espanha, quer em Itália, grandes produtores vêm comprar azeite a granel a Portugal para melhorar os seus lotes[1]», o que confirma que Portugal mantém ainda a sua posição ímpar na produção do óleo que os nossos antepassados, o povo romano, consideravam uma benesse da deusa Minerva.

Através dos tempos, na Europa (e particularmente em Portugal), o azeite conheceu as mais diversas utilizações. Além de principal, se não o único óleo utilizado na alimentação, o azeite era também utilizado como forma de  iluminação, profana e religiosa, e como matéria-prima na confecção das mais diversas mezinhas, especialmente o chamado «azeite virgem», no sentido original da expressão, isto é, aquele azeite primeiro que se obtinha da massa da azeitona, mesmo antes da primeira prensagem. Inclusive, a própria árvore, consagrada a Minerva, entrava em muita oração, especialmente criada para que Santa Bárbara afastasse as trovoadas, livrando os pobres mortais das suas fulminantes consequências. E do ponto de vista tecnológico, isto é, no que diz respeito à sua obtenção, o fabrico do azeite conheceu em Portugal, à semelhança dos outros países pertencentes à bacia mediterrânica, uma lenta mas profunda evolução. O seu fabrico foi passando por diversas fases, cada vez mais avançadas tecnologicamente, desde o lagar mais primitivo, composto por um simples moinho de tracção animal e com prensas constituídas por enormes alavancas inter-resistentes, formadas por enormes troncos de árvores, até às mais modernas fábricas de azeite, com sofisticados sistemas mecânicos de alto rendimento e quase inteiramente automatizados, transformando um trabalho árduo, próprio de homem, em actividade leve, fácil, acessível à mão-de-obra feminina.

É evidente que para nós, do ponto de vista linguístico-etnográfico, o que nos interessa são precisamente os sistemas primitivos de fabrico de azeite, com todos os seus componentes técnicos e terminologia específica, hoje praticamente extintos.

Em 1980, expressamente para o boletim da ADERAV, decidimos elaborar um trabalho com certa profundidade sobre a região de Arouca, trabalho este que, embora publicado em quatro partes, nos boletins números 3, 4, 5 e 6, entre Outubro de 1980 e Maio de 1982, deveria posteriormente ser publicado em volume, facto que nunca chegou a concretizar-se.

Posteriormente, tendo voltado à região de Arouca, durante o ano lectivo de 1988/89, onde realizámos algumas acções de formação, no domínio da tecnologia educativa, para professores do 1º Ciclo do Ensino Básico, viemos a descobrir que o nosso trabalho havia sido publicado, por essa altura, no jornal de Arouca.

Vários leitores que então nos abordaram, tendo sabido que éramos o autor do trabalho, sugeriram-nos, por mais de uma vez, que esta matéria deveria ser publicada em volume, para uma mais fácil leitura e maior divulgação destes aspectos da nossa cultura junto das novas gerações, confirmando-nos a validade da nossa primeira intenção que, por razões de vária ordem, tinha ficado relegada para as calendas gregas, o mesmo será dizer, adiada sine die. Finalmente, passados praticamente vinte anos após a sua primeira apresentação, surge o trabalho apresentado em volume, ainda que em formato electrónico e consequentemente mais acessível, cumprindo-se o que inicialmente imagináramos.

Apesar de terem decorrido trinta e três anos após a nossa primeira passagem por terras de Arouca, o trabalho constitui actualmente um verdadeiro documento histórico da tecnologia de uma época, para além do seu valor linguístico e etnográfico, dando a conhecer à gente nova uma remota tradição de nossos avós que, a não ser registada pela escrita e pela imagem, ficaria irremediavelmente perdida.

Àqueles que o lerem, lembramos que deverão ter em conta que as garras aduncas do tempo deixaram já as suas marcas profundas e que hoje, seguramente, muitas das pessoas referidas, quer ao longo dos capítulos, quer na relação final dos lagares antigos do distrito de Aveiro, só eventualmente se manterão vivas na memória dos seus descendentes. Será, pois, com o espírito de que se está na presença de uma relíquia do passado, que deveremos ler as páginas seguintes, tomando assim conhecimento da maneira árdua, mas empenhada, como os nossos antepassados obtinham o mais precioso óleo usado pelo Homem, quer como fonte de alimento, quer como fonte de iluminação e de cura.

                                                            O Autor,

Aveiro, Fevereiro de 2002

 


[1] - Vd. o artigo Qualidade do azeite define futuro sector, publicado no jornal mensal Notícias da Alimentação, ano I, n.º 8, de Agosto de 1993, pp. 22-23.


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