11º Festival Nacional de Folclore (5º Internacional) - 15 de Julho de 1995 – pp. 6 a 11

 

Para surpresa de muitos

Riquezas da Ria estão a surgir à luz do dia 

Fernando Martins

Quando há um quarto de século, na abertura de uma cave, no Hotel Barra, foram descobertos restos de um galeão, talvez muita gente se interrogasse sobre a razão de ser daquele importante achado ali mesmo à beira-mar. Mas essas interrogações só poderiam partir de quem nunca se debruçou sobre a história deste chão, que hoje serve de base às povoações ribeirinhas de progresso tão evidente, que nem deixa pensar que ainda há poucos séculos tudo isto era mar. Estudos recentes corroboram, cientificamente, o que alguns entendidos, pela simples observação, há muito vêm dizendo. O mar deambulou por aqui, casando-se, quanto foi possível, com o Vouga, o Águeda e o Cértima, e desse casamento nasceram a Ria e as ilhas e ilhotas, muitas das quais continuam desconhecidas dos gafanhões, para só falarmos deles. Aluviões fluviais e areias do mar deram-nos as terras que pisamos. E já o Padre Resende nos diz, na sua já célebre Monografia da Gafanha, que a abertura de um simples poço nos garante a certeza de que as Gafanhas, como outras terras ribeirinhas, têm essa origem. Restos de fauna e flora marinhas, como conchas, algas, espinhas de peixe, outra vegetação característica e lamas, mostram à evidência o que a ciência tem comprovado e continuará a comprovar. Diz ele no primeiro capítulo da referida Monografia, em pé de página: "Nas sondagens a que se procedeu, para a / 7 / perfuração de um poço artesiano, na propriedade do Sr. João Vilarinho, ao poente da Igreja da Nazaré, até à profundidade de 5 m, foi encontrada areia branca; de 5 m a 9 m, lodo fétido; de 9 m a 12 m, areia um pouco escura de mistura com conchas de berbigão. Desta profundidade de 12 m, fornece o poço água cristalina e insípida, que se conserva inalterável". E prossegue, acrescentando, que «a uns 200 metros deste sítio, a água é extraída límpida a 6 m, mas, passadas algumas horas, altera-se para vermelho, o que acontece também junto à estrada de Ílhavo, na Gafanha da Encarnação. Na Cale da Vila, no sítio da Remelha, a uns 9 m de profundidade, foi encontrada uma camada de barro azulado, compacto e duro que, fraccionado, o alfaiate pode utilizar para giz. Também aparecem conchas de berbigão. Estes vestígios indicam bem que toda a Gafanha foi sucessivamente leito do Mar e da Ria

Desta vez, porém, não vamos perder muito tempo nem ocupar muito espaço nesta brochura do Grupo Etnográfico da Gafanha da Nazaré. Pretendemos, tão-somente, chamar a atenção de quantos se têm mantido a leste na defesa dos nossos interesses históricos e arqueológicos, e que muitos são. Mais preocupados com o progresso imediato, vamos esquecendo o que esteve na base da nossa identidade e que vem, como é óbvio, do passado. Ficar, contudo, só por aí, não servirá de nada, já que o progresso, qualquer progresso, tem sempre de se apoiar no passado e no presente, para garantir um sobrevivência estável e duradoira. 

Os recentes achados na Ria, valiosíssimos, obrigam-nos a abordar a questão do seu interesse cultural, enquanto património que urge preservar e divulgar. O astrolábio / 8 / do século XVI, mais concretamente de 1575, encontrado na Ria por um gafanhão, Vítor Manuel Ferreira Paiva, na Páscoa de 1994, quando se dedicava à apanha de amêijoa, sua actividade habitual, será, talvez, e para já, a peça mais valiosa. Avaliada em 12 mil contos por peritos diversos, nomeadamente pela leiloeira Christie's, veio posteriormente a ser desvalorizada em cerca de 25 por cento, porque o achador a danificou, ao limpá-la com recurso a uma lixa, fixando-se então o valor em 8012 contos. Desta verba, e como é de lei, o Vítor Paiva recebeu metade.

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Antes, porém, de falarmos, mesmo a correr, de outros achados, também de muito valor, sentimos ser nossa obrigação alertar quantos andam na Ria, nas suas fainas normais de trabalho, para o cuidado que devem ter, face a um qualquer objecto com aparência de antigo. Neste caso, e pelos anos que passaram debaixo de água ou enterrados no leito da Ria, é natural que a fragilidade aumente, exigindo-se, por isso, muita delicadeza no seu manuseio, ao mesmo tempo que se deve recorrer de imediato a alguém entendido nestas coisas do passado e com idoneidade cultural e científica. Mas tendo sempre em conta que há gente sem escrúpulos e muito capaz de propor negociar a peça, sabendo-se que, por leis aceites em todo o mundo civilizado, os achados desta natureza são sempre propriedade do Estado, recebendo, no entanto, o achador metade do valor estabelecido pelos peritos. Vender o que a Ria nos vai devolvendo, com a determinação, a argúcia e até o sacrifício de quem nela moureja, é crime de lesa-arte e lesa-pátria. E denuncie-se que há por aí peças de cerâmica em casas particulares como, aliás, um canal televisivo tomou público.

Na altura da retirada do astrolábio das águas da Ria, em zona mais perto de Aveiro, foram descobertas outras peças, em especial cerâmica, em quantidade bastante razoável para se aceitar que seriam vestígios de carga de uma qualquer embarcação que se teria afundado nestas paragens.

E também foram encontrados, noutro local, concretamente no canal da Costa Nova, restos de uma embarcação de médio porte, presentemente à espera da classificação rigorosa que se impõe. Para já, podemos adiantar que tudo indica tratar-se de uma embarcação do século XV, talvez do terceiro quartel, / 10 / de acordo com análises feitas pelo método de radiocarbono, conforme informou a Associação Arqueonáutica, com sede em Lisboa. A mesma Associação, porém, sublinha a importância da datação feita e confirmada, de certo modo, por técnicos de reputada idoneidade, por serem poucos, no mundo, achados desta natureza. A nível internacional existem dez embarcações datadas do século XVI e somente seis do período compreendido entre os séculos XIII e XV.

No início das investigações, tudo apontava para que a embarcação fosse realmente do século XVI, atendendo a que nessa altura havia um intenso movimento portuário na vila de Aveiro, cuja praça contava com 160 barcos de alto mar, sendo ainda um centro de construção naval ao nível do próprio movimento. Os mestres construtores tinham, inclusive, privilégios especiais.

A embarcação detectada na Ria será, segundo os mesmos técnicos, aparentada com a "caravela dos descobrimentos" e o espólio da carga, de que se destacam objectos de cerâmica de fabrico local, constituem bom motivo para estudo, não só para os apaixonados pela arqueologia marítima, mas também para os técnicos, sempre interessados em confirmar conhecimentos que só as fontes reais podem proporcionar. Refira-se, ainda, que na Ria de Aveiro há dois pólos de grande importância arqueológica e onde estão assinaladas duas embarcações, objectos cerâmicos e restos orgânicos em bom estado de conservação. São as zonas designadas por Aveiro A (Biarritz) e Aveiro B (perto da cidade). Em Aveiro A foi encontrada a estrutura de um navio de médio porte e respectiva carga, composta essencialmente por cerâmica, donde foram recolhidos 97 exemplares. A embarcação / 11 / que a estrutura denuncia terá 15 a 20 metros de comprimento e nada garante que venha a ser retirada da Ria. 

Adianta-se até a hipótese de, uma vez estudada, voltar a ser enterrada no leito lodoso. Aveiro B designa uma concentração de vasos de cerâmica, mas é legítimo admitir que na mesma área haja vestígios da embarcação que transportava a, agora, tão preciosa carga.

Um outro aspecto deve merecer de todos nós, os que sempre vivemos e nos identificámos com a Ria, a melhor atenção. Referimo-nos concretamente à urgência de reivindicarmos a guarda das peças encontradas, em espaço próprio e aberto ao seu enriquecimento contínuo, pois estamos em crer que a Ria não deixará de nos brindar, generosamente, com outras dádivas. Os achados da Ria, à Ria e suas gentes devem pertencer. Os nossos autarcas certamente não deixarão de lutar para que o astrolábio do século XVI, peça rara no mundo, deixe Lisboa, onde está, no Museu da Marinha, e regresse ao seu ambiente natural. Para que isso possa acontecer, também os etnógrafos, os que andam envolvidos nestas coisas do passado e nos brindam com as danças e cantares do antigamente, têm uma palavra a dizer.

Para já, podemos garantir que se aguarda a todo o momento a disponibilização das verbas necessárias para que os trabalhos de pesquisa sistematizada sejam iniciados na Ria, pois que a autorização do Director do Museu Nacional de Arqueologia foi há meses despachada.

 

 

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