Acesso à hierarquia superior.
 

Mil recordações me afloraram à mente: a família e, principalmente, o meu filhinho mais novo; até reminiscências do meu tempo de criança. Parece impossível que o cérebro faça brotar instantaneamente tantas lembranças! Durante esses quinze segundos, / 28 /descortinou-se-me uma gama de tal frequência que os pormenores mais insignificantes da minha vida avivavam-se extraordinariamente, percebendo-se neles, com toda a nitidez, vários factos, tal qual se passaram há 30, 25, 10 anos!...

A nossa boa estrela, porém, ou melhor, a nossa salvação, foi o prédio não desabar, embora ficasse totalmente contundido. Cá fora e passado que foi este angustiante lapso de tempo, ainda sentíamos a terra a tremer sob os nossos pés, agora mais ligeiramente, assim como percebíamos ainda, embora mais atenuados, os rumores subterrâneos.

Logo que nos vimos livres de perigo, metemo-nos todos no carro do gerente da fábrica, que nos conduziu até junto das casas de pessoas amigas. Só aí, em face da trágica realidade, melhor demos conta da extensão do desastre. De uma dessas casas, género «cottage», com os seus jardinzinhos muito bem tratados, vinham a sair precipitadamente os seus moradores, uns em pijama, outros quase nus, ensanguentados, enquanto que os edifícios apresentavam brechas, com as paredes retalhadas, prestes a desmoronarem.

Apressadamente, as pessoas salvas iam trazendo para fora os seus automóveis e deles se serviam para fugir ou passar a noite. A atmosfera em Agadir, muito amena, noite sem nuvens, cheia de estrelas, lembrava-nos as noites de Verão em Portugal. Os faróis do nosso carro, por entre a escuridão, iam iluminando o aspecto desolador daquele macabro cenário.

O nosso colega de Agadir clamou, numa outra casa, pelos seus amigos, mas estes como poderiam responder se a casa tinha ruído? Lá se encontravam os infelizes, por baixo de montes de cimento, ferro torcido e caliça. As ruas, por sinal muito largas e bem pavimentadas, tinham espaço suficiente para nelas se transitar, mas sempre pelo meio, não fosse sermos apanhados por alguma daquelas moles de cimento, que ameaçavam cair a todo o instante.

Ao longe, dois prédios apresentavam focos de incêndio, aqui a estrada quase obstruída de caliça e impregnada de poeira dos desmoronamentos. Mais adiante, a Igreja Católica desabada; noutro ponto, o hotel Saada, antes com os seus sumptuosos três andares, rodeados por artísticas varandas, não passava agora de um montão grotesco reduzido a três ou quatro metros de altura.

Outra rua com as condutas de água rebentadas, completamente inundada.

Vários automóveis, imponentes pouco antes, agora encravados ou inutilizados pelos escombros dos prédios. Algumas pessoas que conseguiram salvar-se, «in-extremis», de pijama ou semi-nuas, contemplavam petrificadas, mudas de assombro, aquela vastidão horrenda.

/ 29 / Não quisemos ver mais nada e resolvemos regressar à fábrica e passar o resto da noite dentro do automóvel, único local seguro, pois, como é de calcular, as casas que ficaram de pé não nos ofereciam a mínima confiança. Não conseguimos pregar olho. Os nossos sentidos estavam de tal forma excitados que desapareceu completamente todo o cansaço da longa viagem que fizemos.

Pelas 4 da manhã, depois de escutarmos no receptor do carro a estação de Rabat, que apenas transmitia as cerimónias do «Ramadão», decidimos averiguar o que teria acontecido à dactilógrafa da fábrica. Saímos da cidade destruída e, nas estradas, circulavam já inúmeros automóveis, alguns dos quais com as forças da guarnição da base aeronaval francesa a prestar os primeiros socorros às vítimas.

Chegámos à casa da dactilógrafa, a 8 quilómetros de Agadir e deparámos com ela e toda a família, no pátio, para onde tinham trazido bancos e cadeiras, bebidas, alimentos, ele. O terramoto, naquele local, não fora tão violento e por isso o prédio desta família nada tinha sofrido.

A base aeronaval francesa, não muito longe dali, também nada sofreu, e à sua organização rápida e eficiente deve Agadir o salvamento de muitos feridos.

Visitámos, ainda, de madrugado, outras famílias que, felizmente, estavam sãs e salvas.

Pelo que tínhamos visto anteriormente, calculávamos fosse de algumas centenas o número de vítimas, mas, voltando a Agadir assim que o Sol rompeu, logo esse cálculo aumentou para alguns milhares, em face dos bairros mais populosos da cidade terem ficado completamente arrasados. Agadir, cuja área é um pouco superior à da cidade de Aveiro, compreende vários bairros, a saber: Quartier / 30 / de Founti, Quartier de Talbordj, Ville Nouvelle, Quartier Industriel e ainda o Quartier des Abatoirs.

 

 

página anterior início página seguinte