DIVERSOS COM EVENTUAL INTERESSE

As barricas dão cor à cidade

Quinta-feira, 26 de Novembro de 1998 – pág. 14 Irina Morais

As barricas foram criadas no início do século XX. Quando João Ferreira nasceu, já a sua família trabalhava as barricas, e ele, desde que saiu da escola, com apenas 11 anos, começou a aprender a fazê-las. Confessa que, a princípio, não gostava muito, mas naqueles tempos não havia escolha. Barricas foi o que aprendeu a fazer e que hoje com orgulho continua a fazer, pois só agora lhe conhece o verdadeiro significado.

João Ferreira desde os 11 anos que conhece a arte e a forma das típicas barricas dos ovos-moles de Aveiro. Para ele fazer barricas é a única forma que conhece de dar qualquer coisa aos outros e à cidade.

A casa onde João Ferreira trabalha foi aberta por um tio seu, e quando saiu da escola teve de aprender uma arte. Foi para a oficina do tio e lá aprendeu a arte de fazer barricas. «Quando o meu tio veio para aqui, em 1963, havia em Aveiro apenas uma casa da especialidade. O tio de João Ferreira trabalhou durante algum tempo na outra casa e só mais tarde se estabeleceu na actual oficina onde ainda hoje trabalha João Ferreira.

 

«Fiquei sozinho na oficina»

«Quando o meu tio morreu fiquei sozinho na oficina. Comprei os direitos de fabrico a Júlio Pereira, porque, quando as barricas foram feitas pela primeira vez, tiveram de ser registadas no Instituto Nacional de Propriedade; tudo isto se passou por volta de 1920.» Para João Ferreira continuar a fabricar as barricas, teve de comprar os direitos de fabrico, se não as barricas acabavam.

João Ferreira orgulha-se de ser a única pessoa na cidade, no país e no mundo, a fabricar as barricas de Aveiro. Geralmente são três ou quatro pessoas a trabalhar na oficina, «mas quase sempre quem está aqui sou eu e o meu sócio. Eu dou-lhes a forma na madeira e ele pinta-as». Não sendo muito, trabalho não falta, até porque são os únicos fabricantes. As encomendas são, essencialmente, para a zona de Aveiro, visto que as barricas se destinam para os ovos-moles de Aveiro.

João Ferreira diz que «gostava de ver jovens na minha oficina, mas hoje em dia já ninguém tem paciência para fazer disto uma profissão». Nas férias de verão costumam aparecer uns rapazes na oficina de João Ferreira, mas rápido desaparecem; queixam-se que o trabalho é muito pesado. «Os meus filhos até se interessam, mas isto não dá dinheiro e dá muito trabalho. EIes, hoje em dia, procuram urna profissão que dê algum dinheiro e eu não os censuro por isso. A vida assim o exige. O tempo dirá se algum deles continua com a oficina ou não».


«O preço: é caro?»

João Ferreira diz que «as pessoas se queixam do preço de todas as coisas, quanto mais do artesanato. Mas também às vezes dizem certas coisas porque não sabem o trabalho que dá». Este tipo de oficinas de artesanato nunca pode dar muito lucro nem pode funcionar com muitos empregados, porque depois corre o risco de não poder pagar os salários. Quem trabalha neste ramo, como João Ferreira, tem de o fazer sobretudo pelo gosto e pelo prazer de ser artesão. Quase todos os artesãos dizem o mesmo: «Só é artesão quem o é por gosto e não pela riqueza que daqui queira tirar.»

Por isso, João Ferreira diz com gosto: «As barricas são necessárias. Sem barricas a cidade perdia um bocadinho de brilho, por isso não se pode deixar de as fazer. Eu tenho essa responsabilidade».

Torno onde são feitas as barricas.

Fiquei sozinho na oficina.

 

«Vou fazer isto até que possa»

Isto de fazer artesanato tem de nascer com as pessoas. É o que podemos concluir. Não são todos que estão dispostos a trabalhar numa arte que não tem ajudas nenhumas e que paga impostos como uma empresa qualquer. João Ferreira já se convenceu de que tem uma responsabilidade para com a cidade e que são as barricas que identificam Aveiro. Jamais poderão sair das montras das pastelarias da cidade. «Eis por que vou fazer as minhas barricas enquanto tiver saúde, embora isto não compense o trabalho que dá, mas agora não posso voltar atrás».

A cidade e as pessoas envaidecem-se por mostrá-las. Cada vez mais e, felizmente, a sociedade civil de Aveiro vai reconhecendo o valor destes elementos identificativos de Aveiro, que não se podem perder. «Sem barricas nem os ovos-moles têm o mesmo sabor. Para meu desgosto isto tem tendência a acabar» desabafa João Ferreira.


Ajudas: recebem algumas?

No que diz respeito a ajudas todos os artesãos com quem falámos até agora parecem estar de acordo neste ponto: não há apoios nem incentivos por parte das entidades responsáveis, nomeadamente a Câmara Municipal de Aveiro. Só a Rota da Luz tem vindo a incentivar o artesanato, quando se faz representar em exposições e feiras, nas quais mostra um pouco do artesanato que vai sendo feito por terras aveirenses.

João Ferreira comenta: «Isto dá muito trabalho e por vezes as autoridades não incentivam as pessoas a trabalharem no artesanato, para que ao menos sintam um pouco de gosto pelas coisas que vão sendo feitas». Em relação aos impostos que pagam, João Ferreira também se queixou: «Não podemos pagar a mesma percentagem que uma grande empresa. Por vezes aquilo que temos de lucro não chega para fazer face às despesas: salários, impostos e compras de material. Acho que o Governo havia de criar uma percentagem diferente para quem trabalha no artesanato. Assim, isto acaba mais rápido do que aquilo que se pensa, Só quem está nisto é que sabe o que na verdade se passa».

João Ferreira pensa ser urgente a tomada de medidas, para que o artesanato não morra e para que o artesão não se sinta abandonado. É importante que este se sinta ajudado. De outro modo, o desencanto: «Por vezes chego a esmorecer. Uma pessoa faz contas e no fim aparecem outras». João Ferreira e, como ele, muitos outros, que vivem sem motivações e que esperam ansiosamente por medidas, por parte da Câmara Municipal de Aveiro, para que «acordem e vejam aquilo que têm que fazer pelos artesãos desta cidade que tão bem conhece o fazer das barricas».


Um sonho

João Ferreira confessa que o único sonho acalentado é continuar a fazer as barricas de Aveiro. Mas não vê ninguém interessado em salvar o património cultural da cidade, porque, para ele, as barricas também fazem parte de Aveiro. «Gostaria que se incentivasse a juventude, para que gostassem de aprender esta linda arte que é ser artesão.»

 

Barricas de ovos moles. Imagem obtida com a colaboração da Pastelaria Peixinho, de Aveiro.

 

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