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Já
lá vão perto de quarenta anos! Era eu, então, um rapazito da escola.
O meu pai era o presidente dos Bombeiros Velhos. E eu tinha muita
vaidade nisso, e orgulho também: o suficiente para me julgar
superior aos meus companheiros. Pois se o meu pai era o dono dos
«bombeiros», e dos incêndios e daqueles brinquedos muito grandes,
pintados de vermelho, com que não apetecia nada brincar, valha a
verdade. Quando lá ia, passava por eles com respeito e temor, apesar
de estarem muito quietos e calados. É que eles, qual matéria viva
dotada de sensibilidade, comunicavam-me a impressão estranha de que
estavam sempre atentos e prontos para correrem à desfilada, logo que
soasse o primeiro alarme do sino grande de S. Domingos — para mim,
certamente o maior sino do mundo! |
Tenente Jaime da Silva
Sabino
Membro do Conselho Fiscal |
E como aquela voz
estentória era determinante, não admitindo demoras nem hesitações, lá
iam, carros e bombeiros, facies duro para a luta contra as chamas,
corações abnegados para salvar vidas alheias.
Que diferença nas
paradas! Nem pareciam os mesmos homens. Muito calmos, muito direitos,
muito a generais»! Estou a vê-los: Firmino Fernandes, idoso e doente, a
vender saúde nas paradas e a remoçar nos incêndios; Manuel da Rosa,
velhinho, uma espécie de símbolo da corporação; Isaías Albuquerque,
bastante gordo, e tão elegante e ligeiro dentro da farda; um outro, cujo
nome não tenho presente, e de quem recordo os enormes bigodes que deviam
ter atemorizado muitos incêndios; Francisco da Encarnação, a quem se
chamaria, agora, o galã bombeiro; o velho Bandarra, e tantos, tantos
outros, todos muito aprumados dentro daquelas fardas
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asseadas, luvas dum branco sem mácula; botões luzidios, capacetes
resplandecentes, postos na cabeça com aquele gestinho peculiar de cada
um, que os tornava mais garbosos. Mas o que eu tinha de reconhecer, com
certa mágoa, era que os Bombeiros Novos não faziam pior figura. E a
verdade, para mim tão arreliadora, era que, muitas vezes, eram estes que
chegavam primeiro aos incêndios.
Um dia fui
convidado... Não, ponhamos as coisas no seu lugar: um dia, o meu pai
mandou-me à sede dos bombeiros falar com o Firmino Costa, outro bombeiro
dedicado (haverá bombeiros que não sejam dedicados?). Quando entrei no
salão já lá estavam umas duas dúzias de garotos e meninas da minha
idade. O Firmino Costa colocou-me ao lado duma menina e disse-me: —
«Esta é o teu par». E foi assim que passei a fazer parte do rancho
infantil dos Bombeiros Velhos. Eu era um rapazito com alguma iniciativa
e com expediente de sobra para a brincadeira. Mas, perante situações
mais sérias era um tímido. Assim, quando tinha de comprar uns sapatos
novos, nunca maçava ninguém. Os primeiros que me calçavam, quer
estivessem apertados ou largos, já os não abandonava; dizia que me
assentavam muito bem; tinha medo de não conseguir melhor, e aqueles já
eu tinha seguros... nos pés.
Não me lembro das
danças do rancho. Da exibição, no coreto do jardim, tenho uma vaga
reminiscência, mas o que tenho vivo na memória é um acontecimento de que
fui vítima, precisamente por causa daquela faceta de tímido.
Na véspera da
exibição pública, houve ensaio geral e distribuição de barretes e
faixas, para complemento do nosso traje de pescador. Em cima de uma
mesa estava um monte de barretes. À ordem de avançar todos corremos
para eles, precipitadamente, como se não houvesse barretes que
chegassem. Naquela desordem agarrei-me ao primeiro que me caiu nas
mãos. Vou a experimentá-lo e sofro uma decepção: era muito apertado.
Mas não desanimei; aquele é que eu já não largaria. E com as duas
mãos, em movimentos precipitados de balancé, fazia os maiores
esforços para enfiar o barrete. Olhava para os outros companheiros e
via-os com seus barretinhos muito satisfeitos, todos jeitosos. Uma
espécie de agonia dominava-me. Então, aos esforços das mãos juntei a
colaboração da cabeça, fazendo com ela movimentos de parafuso. Foi o
desastre! |
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Manuel José da Costa
Guimarães
Membro do Conselho Fiscal |
Senti um estalo no
pescoço, e uma dor agudíssima. E o pescoço, durante um mês, não se mexeu
nem mais um milímetro. No dia seguinte, no jardim, com outro barrete, um
aprumo exagerado distinguia-me dos outros companheiros. Muito teso,
muito hirto, devia ter irritado quantos me olhassem, quando afinal
ninguém conhecia a significação trágica daquela antipática. postura.
Já lá vão perto de
quarenta anos! Era eu, então, um rapazito da escola.
Um destes dias vi os
bombeiros marchando nas ruas da cidade, com bandeira e música. Tudo tão
belo, tão evocativo, tão igual a sempre, que no meu espírito, enlaçando
passado e presente, se originou uma natural transmutação de personagens.
E revi os homens do passado, tão presentes e tão vivos que me deu ganas
de saltar para a rua e, como dantes, marchar ao lado deles.
Dezembro de 1956
Albano Pedro da
Conceição |